Jovens de 13 anos assumem papéis de adultos em peça de teatro espanhola

Grupo espanhol La Tristura traz a Belo Horizonte o espetáculo 'Matéria-prima', sucesso internacional de crítica

por Carolina Braga 11/05/2014 06:00

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Mário Zamora II/Divulgação
Os adolescentes Gonzalo, Siro, Ginebra e Candela são preparados cuidadosamente pelos integrantes do La Tristura (foto: Mário Zamora II/Divulgação )

Em recente evento teatral em Munique, Célso Giménez, ator e criador espanhol, se deu conta de que as conversas em torno das artes cênicas, mesmo em 2014, tinham pouco a ver com as concepções que ele e seus companheiros do grupo La Tristura tinham sobre a arte do palco. É em defesa de um teatro que fale de seu tempo, sem reverências exageradas ao passado, em especial aos clássicos, que a companhia chega a Belo Horizonte nesta segunda-feira para apresentações de Matéria-prima, na programação do FIT-BH.

Desde quando foi formado, o La Tristura decidiu ter uma lógica diferente. Por exemplo, entre 2004 e 2006, os integrantes Itsaso Arana, Pablo Fidalgo, Violeta Gil e Celso Giménez não criaram nenhuma peça. Eles, que se conheceram na Escola Superior de Arte Dramática de Madri, dedicaram dois anos para pensar como queriam levar as ideias para o palco.

“É imprescindível estudar Shakespeare, por exemplo, mas não é suficiente. O teatro do mundo, hoje, será construído por nós. É importante se comprometer com o tempo em que se vive”, afirma Celso Giménez. Concluíram que seria principalmente o texto e não outros elementos da cena o aspecto pelo qual gostariam de ser conhecidos. Assim tem sido feito desde então.

“Há um grupo grande de pessoas que quer trabalhar e já começa fazendo teatro. É legal que se tenha essa energia, mas, em geral, o espaço para a reflexão é sempre humilde nestes casos”, observa Celso. O desejo do La Tristura é oposto. Para ele, toda criação tem que seguir o exemplo da relação que os japoneses dedicam às plantas. “Tem que semear, regar e, lentamente, esperar florescer”, explica. Não importa se demorar para dar frutos.

Foi em 2011 que o La Tristura estreou Matéria-prima, a terceira montagem da companhia. É essa também a criação responsável pela projeção internacional do grupo. Somente no Brasil, já foi apresentado duas vezes, uma no Festival Cena Contemporânea, de Brasília, e outra no Festival Internacional de Teatro de Londrina, o Filo. Agora, no FIT-BH, o espetáculo estará em cartaz no Teatro Francisco Nunes de terça a domingo.

A montagem fala de questões que são recorrentes na sociedade contemporânea, como a herança histórica, a educação, a política, o casamento e as dificuldades de relacionamento. Até aí nada muito diferente do habitual. O distinto é que Itsaso, Pablo, Violeta e Celso, com idades entre 28 e 30 anos, cedem o espaço do palco para Ginebra Ferreira, Gonzalo Herrero, Siro Ouro e Candela Recio. Detalhe: eles têm apenas 13 anos.

 Mario Zamora II/Divulgacao
(foto: Mario Zamora II/Divulgacao)


“O contraste é que seres que ainda são considerados inocentes, puros e não culpáveis falam de coisas com a crueza do mundo”, detalha Celso. A ideia do espetáculo surgiu quando os atores adultos criavam Atos da juventude, montagem de 2010. Em determinado momento dos ensaios, alguém levantou a questão: “E se em um dos atos fôssemos substituídos por crianças, que assumiriam nossos personagens, nosso texto e depois tudo voltasse ao normal?”, lembra Celso. Seria uma solução genial, mas eles não tiveram tempo suficiente para encontrar crianças que pudessem assumir tal postura.

Vida e política

Matéria-prima nasceu desse desejo guardado. Calhou de ser o encerramento da trilogia Educação sentimental, que marcou o início da presença cênica do La Tristura, em 2006. O convite é para entender os corpos como históricos e políticos, carregados de significado desde o nascimento. “É uma forma de entender a vida de forma panorâmica. A política não se faz somente no Parlamento, está nos seus relacionamentos, na amizade. Trabalhamos a ideia de que todos os atos têm consequência e temos que viver em coerência com isso o tempo inteiro.”

Lembre-se: somos provocados a fazer reflexão ao ver crianças em cena. Ginebra Ferreira, Gonzalo Herrero, Siro Ouro e Candela Recio participaram de seleção, não se conheciam e assumiram a cena com maturidade invejável. Pelo menos foi o que disse a crítica no país de origem. “Um trabalho paradoxalmente maduro, extraordinariamente exigente do ponto de vista formal, despojado, sem concessões”, publicou a revista Teatro Madrid. O tradicional El País aponta Matéria-prima como uma “aposta por um teatro fronteiriço, distante do mero entretenimento”.

A relação que o La Tristura tem com o teatro é rigorosa. Os integrantes do grupo se dedicam a ensaiar os atores-mirins como se fossem eles próprios. Por mais que a montagem já tenha pelo menos três anos de estrada, todas as vezes que vão se apresentar a dinâmica é a mesma. Ensaiar, ensaiar e ensaiar. Já eram quase 22h, por exemplo, quando Celso Giménez repetia o espetáculo com Candela Recio.

“Somos como uma grande família. Nos compreendemos muito bem e a relação é ótima”, diz a jovem atriz. Essa foi a primeira experiência que teve com o teatro e, curiosamente, com um grupo do qual já havia ouvido falar. “O teatro deles sempre me chamou a atenção. Eu gosto porque é diferente”, diz a jovem atriz.

Provocações da crise

Quando o La Tristura nascia em Madri, em Belo Horizonte também havia um movimento semelhante em busca de um teatro de grupo que abordasse questões do nosso tempo. Foi quando nasceram companhias como Espanca! e Teatro Invertido, que chegaram pouco tempo depois do Luna Lunera e da Cia Clara. É de se esperar que a obra espanhola reverbere de modo especial por aqui. “O público brasileiro é bastante expressivo. Até mais que em outros lugares que apresentamos”, conta Celso.

Matéria-prima, além de inovar em linguagem teatral, é o olhar de uma geração. Inclusive uma turma que tem vivenciado transformação profunda no local onde vivem. Como conta o ator, a Espanha era uma antes da crise econômica mundial e, hoje, é um país bastante diferente. Artista de verdade não passa imune a transformações desse porte.

Com cautela, Celso Giménez observa que há muito oportunismo à solta. É preciso conhecer a fundo o que está ocorrendo com a vida das pessoas, já que daí sai muito material artístico. Ele e seus companheiros de grupo fazem parte da primeira geração espanhola que teve oportunidade concluir os estudos, inclusive de pós-graduação. “Minha mãe estudou até os 11 anos. Muitos da minha geração têm curso superior, mas poucas possibilidades de trabalho. É uma sensação de impotência, difícil de contornar”, conta.

De certa maneira, o contexto já influencia o La Tristura. A peça mais recente, El sur de Europa. Días de amor difíciles, nasceu da máxima Capitalism kills love (Capitalismo mata amor), do coletivo Claire Fontaine. Foi o ponto de partida para o espetáculo que entende a Europa como uma grande sinfonia, impossível de ser controlada. O teatro, na ficção do La Tristura, surge como breve interrupção do concerto.

z Programação deste domingo
» Na rua
11h, 14h30, 16h30 – Augenblick dream (França), no Parque Municipal
16h30 – De mala às artes, no Parque Estrela Dalva (Regional Oeste)
. Entrada franca

» No palco
19h – Oratório – A saga de Dom Quixote e Sancho Pança (MG), no Teatro Francisco Nunes
19h30 – 1325 (Portugal), no Teatro da Biblioteca Pública
19h30 – Memórias em tempos líquidos (MG), no Oi Futuro
20h – De nós dois, só (MG), no Espaço Ambiente
20h – O líquido tátil (MG), na Sala Juvenal Dias (Palácio das Artes)
. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), no Mercado das Flores, Av. Afonso Pena com Rua da Bahia, e www.fitbh.com.br.
. Confira endereços no Roteiro, na página 5

Trecho de Matéria-prima

Tem 11 anos de Europa
É provável que tenha filhos
Já prometeram coisas que não podem ser cumpridas
Como se promete de tudo
Você também prometeu
E agora que sabes que os que te prometeram coisas
Não poderão cumprir com você
Você também não poderá fazê-lo
Com aqueles que prometeu
Eram coisas importantes
Coisas que iam mudar o mundo
Não vai poder cumprir
É por isso que está triste
É por isso que quer morrer.

MATÉRIA-PRIMA

Dias 13, 16 e 17, às 20h; 14 e 15, às 15h; e 18, às 19h. Teatro Francisco Nunes. Avenida Afonso Pena, s/nº, Centro, (31) 3224-4546. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), à venda no Mercado das Flores, Av. Afonso Pena com Rua da Bahia, e pelo www.fitbh.com.br.

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