Ano foi marcado pela censura travestida de privacidade

Ano marcado pela polêmica das biografias teve bate-cabeça na participação nacional na Feira de Frankfurt. Prêmio Nobel dado à canadense Alice Munro revaloriza o conto

por João Paulo 28/12/2013 00:13

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Marcos Vieira/EM/D.A Press
Marcos Vieira/EM/D.A Press (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press )
O ano literário, que deveria evocar criação, vai ficar manchado pelo seu avesso: em 2013 a censura tentou esticar suas garras, travestida de defesa do direito de privacidade, contra a livre publicação de biografias. Capitaneados pelo grupo Procure Saber, alguns artistas se mobilizaram para manter a exigência de autorização do biografado ou da família. A falsa polêmica entre dois universos de direito (liberdade de expressão e a privacidade) foi na verdade uma batalha contra a inteligência.


Liberdade de expressão implica responsabilidade e permite que as pessoas lancem mão do direito para se proteger contra abusos e buscar reparações. Já censura supõe apenas silêncio. Não poucas vezes, o debate descambou para o aspecto financeiro. Mais que ciosos de sua intimidade, alguns artistas se mostraram atentos às perspectivas de ampliar seus ganhos e atacaram com desconhecimento de causa o trabalho de biógrafos sérios. O pior da celeuma foi o desaquecimento do setor e a renúncia voluntária de bons autores dedicados ao gênero, cansados de guerra. A ação está no Supremo Tribunal Federal.

Outra polêmica que deu o que falar foi a participação brasileira na Feira do Livro de Frankfurt, que teve o Brasil como país homenageado. Ao lado da saudável busca de novos mercados, o evento ganhou repercussão pela crítica à seleção dos autores que representaram o país – com acusações de racismo e favorecimento de amigos – e pelo discurso duro e coerente de Luís Ruffato, na contramão do ufanismo militante.

O Nobel concedido à canadense Alice Munro consagrou o conto, gênero nem sempre valorizado, que teve safra especial no Brasil, com novos livros de três mestres: Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e Luiz Vilela. O ano marcou ainda o centenário de nascimento de Vinicius de Moraes, Lúcio Cardoso e Rubem Braga, com vários – e bons – lançamentos relacionados a eles.

Toda poesia
A poesia brasileira esteve em alta. Adélia Prado (foto) voltou a publicar volume de inéditas, Miserere, um corajoso encontro face a face com a vida e a morte. Destaque especial para projetos de reedição. Chegaram de uma vez só as obras completas de dois mitos da poesia brasileira dos anos 1970, Paulo Leminski (Toda poesia) e Ana Cristina César (Poética), autores que morreram jovens e deixaram marcas profundas na lírica contemporânea. Outras publicações que mereceram atenção foram Dever, reunião de obras de Armando Freitas Filho entre 2007 e 2013, e Mínima lírica, com os dois primeiros livros de Paulo Henriques Brito.

Melhor de todos
Ninguém tira o título de livro do ano de Longe da árvore – Pais e filhos em busca de identidade, de Andrew Salomon. O tema do longo ensaio (são mais de 1 mil páginas) é a diferença. O autor investiga, inspirado na própria trajetória de excepcionalidade como homossexual e portador de dislexia, o universo de crianças e adolescentes considerados “diferentes”, como surdos, gênios, autistas, esquizofrênicos, trasngêneros, portadores de síndrome de Down, anões e crianças que nasceram em razão de estupro. O livro tanto questiona a categoria de normalidade quanto evidencia que a diferença é o componente fundamental da experiência humana.

Gente grande
Na ficção brasileira, o período foi rico e de confirmação de trajetórias já consolidadas, o que mostra a constituição de um sistema literário maduro. Entre os destaque estão Opisanie swiata, de Veronica Stigger, criativo jogo literário e visual; Reprodução, de Bernardo Carvalho, um romance sarcástico sobre linguagem e identidade; A república das abelhas, mescla de romance histórico e biografia ficcional, de Rodrigo Lacerda; e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, de Joca Reiners Terron, um raro caso de terror e suspense assumidos. Carlos de Brito e Mello deu um passo importante com seu segundo romance, A cidade, o inquisidor e os ordinários, exemplo raro de farsa moralizante, com domínio absoluto da linguagem e do humor.

Haja memória
Entre os autores estrangeiros, o livro de maior impacto do ano foi A morte do meu pai, do norueguês Karl Ove Kanausgard, primeiro dos seis volumes da autobiografia Minha luta, um impressionante documento humano e literário. Outro grande romance foi O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura, um thriller histórico que tem como protagonistas Trotski e seu assassino, Ramon Mercader, narrado por um escritor cubano que vive mais uma das muitas derrocadas e antevisões do ocaso do sonho socialista. Para completar o pacote internacional, não dá para perder a edição dos Contos reunidos de Vladimir Nabokov, o mais sofisticado estilista do século 20.

Para pensar
Na área de não ficção, o destaque ficou com Amor e capital, de Mary Gabriel, biografia coletiva da família Marx, que tem como pano de fundo o painel histórico das primeiras lutas socialistas, no século 19. Em busca de um final feliz, de Katherine Boo, um retrato sem retoques da miséria de uma favela de Mumbai, foi exemplo de reportagem em profundidade, com texto de grande acabamento literário. A boa noticia na área de filosofia foi a publicação da coleção Escritos de Marilena Chauí, que começou com dois volumes: Contra a servidão voluntária e Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Sobre a realidade brasileira, o ensaio mais arguto foi Imobilismo em movimento, de Marcos Nobre.

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