É quase religioso. Quinta-feira é dia sagrado para um pequeno grupo de moradoras do Morro do Papagaio, na Região Sul da capital mineira. “Largo tudo. Deixo a roupa no tanque e a louça na pia. Deu a hora, não quero nem saber, venho logo para cá”, conta a dona de casa Maria do Carmo Fernandes Lima. Pedindo desculpas pelo pequeno atraso, a aposentada Maria Emília Ramos de Araújo chega afobada. Ela precisou torcer as roupas das filhas antes de sair correndo para o compromisso semanal. “Aqui, a gente esquece todos os problemas”, explica a colega Adeguimar Maria Alves, a Dê.
Tanta ansiedade tem motivo: é dia de fazer teatro na Casa do Beco. Com outras três mulheres, também moradoras do Morro do Papagaio, o trio forma o grupo Entre Elas, um dos projetos idealizados e mantidos pelo Grupo do Beco na região da Barragem Santa Lúcia.
Veja fotos das donas de casa nos ensaios do grupo de teatro
Dirigida por Nil César e a italiana Anita Mosca, a companhia tem em comum o fato de suas integrantes serem não apenas mães, mas avós e bisavós. Com mais de 50 anos, elas se permitem vivenciar a experiência cênica em plena maturidade.
Desde 2010 em ação, as atividades do Entre Elas contemplam aulas semanais de expressão corporal, voz e interpretação, além de mostras semestrais para exibir o resultado dos trabalhos. Em 8 de novembro, Maria do Carmo, Maria Emília e Adeguimar estarão em cena ao lado dos alunos da Casa do Beco. Até lá, as quintas-feiras serão dedicadas aos ensaios.
“O trabalho do Grupo do Beco é pesquisar a questão social e colocar isso no palco. Trabalhar com elas é um desafio muito gostoso”, comenta Nil.
Experiências
Moradora do Morro do Papagaio há 45 anos, Maria do Carmo Fernandes Lima não sabia o que é ser popular até entrar para o grupo. “Sabe o que mudou na minha vida? As pessoas passaram achar a gente mais interessante e a nos reconhecer na rua”, conta. Ela procurou o teatro por sugestão da família. Tem o apoio dos cinco filhos, dos 25 netos e da bisneta para entrar em cena. “Eles gostam de me ver. Falam: mãe, a senhora é danada!”, diverte-se.
Os motivos que levaram Adeguimar ao teatro são totalmente diferentes. Depois de passar por cirurgia para a retirada de um tumor benigno no cerebelo, ela perdeu alguns movimentos. “O fisioterapeuta recomendou que procurasse atividade que gostasse muito de fazer”, lembra.
Nos primeiros meses, Dê chegava às aulas carregada. “O Nil colocava a gente para brincar e rolar. Quando voltei ao médico, ele me perguntou que fisioterapia era aquela”, revela. A experiência é tão lúdica que a atriz amadora não titubeia, ao ser perguntada sobre o que o teatro significou para sua vida: “A infância que não tive”.
Maria Emília Ramos de Araújo se mudou de Montanha, no Espírito Santo, para BH logo depois da morte do marido. Ao passear pelas redondezas da Casa do Beco, soube das aulas e ingressou no grupo. “Teatro é uma aventura boa. Perdi o medo. Antes, não ia para lugar nenhum. Agora vou para todos os lados”, conta. No ano passado, Emília cogitou voltar para a cidade natal. Desistiu por causa do teatro.
O espetáculo que será apresentado em novembro já tem cenários. As próprias atrizes produzem os figurinos. A trama será construída a partir das experiências delas. A ideia é falar sobre a vida na roça e no interior e também sobre a idealização do casamento.
Celeiro de projetos
A Casa do Beco foi inaugurada em 2003. Até 2009, funcionou apenas como sede do Grupo do Beco, companhia de teatro formada por moradores da comunidade do Aglomerado Santa Lúcia. A partir de 2010, o espaço se voltou para a capacitação artística. Este ano, foram implantadas oficinas técnicas. O grupo mantém programação cultural em seu entorno por meio dos projetos Cozinha cultural, Cine Beco e Teatro na laje, premiado pela Brazil Foundation, em 2006, por levar as artes cênicas para públicos usualmente distantes das casas de espetáculos.