Morre aos 86 anos o romancista mineiro Autran Dourado

Escritor é autor de obras clássicas da literatura brasileira contemporânea, como Ópera dos mortos e Sinos da agonia

por João Paulo Carolina Braga 01/10/2012 08:54

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(foto: Divulgação)
 
Morreu neste domingo no Rio de Janeiro o escritor Autran Dourado, depois de três meses de internação por causa de problemas respiratórios. Ele tinha 86 anos. O corpo do romancista foi enterrado no Cemitério São João Batista. Autor de vasta obra, na qual se destacam os romances, mas que também inclui ensaios, memórias, novelas e contos, Waldomiro Freitas Autran Dourado nasceu em 1926, em Patos de Minas. Ganhador de importantes prêmios literários, entre eles o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, e o Prêmio Camões, considerado o mais importante da literatura em língua portuguesa, Autran Dourado teve um de seus romances, Ópera dos mortos, de 1967, incluído na seleção de obras representativas da literatura universal, feita pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Filho de juiz, o escritor passou sua infância em Monte Santo de Minas e São Sebastião do Paraíso, em Minas Gerais. Estudou direito em Belo Horizonte, para onde se mudou aos 17 anos. Sua estreia literária se deu com o romance Teia, em 1947. Sua segunda obra publicada, Sombra e exílio, de 1950, ganhou o Prêmio Mário Sette do Jornal de Letras. Mudou-se em 1954 para o Rio de Janeiro, de onde não sairia nem mesmo para acompanhar Juscelino Kubitschek, de quem era secretário de Imprensa, quando o ex-presidente se mudou para Brasília.
Escritor traduzido em vários idiomas, com preocupação em tratar de temas universais, a literatura de Autran Dourado, no entanto, carrega muitas marcas de sua origem. Alguns de seus romances transcorrem em tempos passados, com uso sofisticado da linguagem barroca. Muitas de suas narrativas foram ambientadas na fictícia Duas Pontes, também no interior mineiro. O estilo, sempre clássico, com dicção machadiana, permitiu ao escritor experimentar gêneros e climas, até mesmo com narrativas picarescas e eróticas.
O escritor nunca foi provinciano ou bairrista, menos ainda adepto de ficção aos moldes regionalistas. Seu tema sempre foi o homem em circunstância: seus medos, angústias, desejos e contradições. Mestre do painel social, principalmente das cidades pequenas e dos contextos mais opressores, interessava a Autran Dourado o que ia na alma dos personagens. Para ele, a história – tão presente em seus romances –era uma dimensão da psicologia.
O livro mais conhecido do escritor, Ópera dos mortos, se aprofunda no passado da família de Honório Cota. O cenário físico e moral é um velho sobrado corroído pelo tempo. Seguindo a arquitetura barroca, o destino dos moradores vai sendo revelado em vestígios, deixando vir à tona fantasmas, segredos e tragédias. Como numa ópera, as várias vozes se revezam, deixando entrever o tecido musical da narrativa e da fatalidade mítica que a conduz.
Em outros romances, Autran desenvolveria com o mesmo virtuosismo narrativo o romance de formação (Risco do bordado), o romance histórico (Sinos da agonia), o realismo simbólico (Novelário de Donga Novais), a “história de pesca” (Barca dos homens), além de um conjunto de novelas e contos que demonstram o mesmo domínio no âmbito da narrativa curta.
 
Poética 
 
Autran Dourado era um criador consciente de seus instrumentos de trabalho. Suas obras eram cuidadosamente planejadas, como chegou a explicitar no ensaio Uma poética de romance: matéria de carpintaria (1976), que mostra o trabalho prévio à feitura do romance. O escritor planejava desde a estrutura (muitas vezes inspirado em mitos e tragédias) até a forma dos capítulos e nomes dos personagens. O uso de várias vozes dentro de uma mesma narrativa e a segurança com que tratava a temporalidade eram fruto desse preparo minucioso. 
 
O livro, um caso raro na bibliografia brasileira, funciona como contraponto para os trabalhos acadêmicos (já que não se trata de teoria) e revela os bastidores da criação literária a partir de reflexões do próprio escritor. Entre as revelações que faz, ao tratar de seus romances mais conhecidos, está a forma de composição em capítulos-painéis, que fazem do livro um dispositivo desmontável, que permite inclusive alterar a ordem da leitura dos capítulos.
 
A reflexão sobre a própria obra também está presente em Meu mestre imaginário, que dialoga com várias técnicas literárias de autores que vão de Homero a Machado de Assis, passando por Flaubert e Stendhal. Como faria em outra ocasiões, Autran Dourado lança mão de um alter-ego, Erasmo Rangel, para passear livremente por várias concepções literárias, filosóficas e poéticas, sem se preocupar com teorias da moda. 
 
Política 
 
Como todo bom mineiro de seu tempo, Autran Dourado gostava de literatura, política e do Rio de Janeiro. A aproximação com a política se deu por meio de Juscelino Kubitschek, de quem foi secretário de imprensa até 1960. Os tumultuados anos JK, no entanto, só seriam revelados com o livro de memórias Gaiola aberta, em 2000. Antes disso, no entanto, em 1984, o escritor havia transfigurado a experiência no livro A serviço del-Rei. No romance estão presentes um senador vindo do interior mineiro que chega à Presidência da República, um secretário de Imprensa com ambições de se tornar escritor, episódios de perseguição política, corrupção e loucura. 
Mas é com Gaiola aberta que o escritor passaria em revista o passado político e prestaria conta de sua participação nos bastidores do governo JK. Além do presidente, outro personagem marcante é o poeta Augusto Frederico Schmidt. Autran, distanciado pelo tempo, talvez tenha aumentado sua importância nos rumos da política brasileira, atribuindo à sua lavra várias expressões eternizadas por JK (como “Deus poupou-me do sentimento do medo”, em resposta às ameaças de Carlos Lacerda) e mesmo decisões em áreas como política externa e economia. 
O livro, mesmo que gere desconfiança quanto a uma possível mitomania, traz episódios deliciosos quando se aproxima da intimidade do ex-presidente (Autran lembra que muitas vezes despachava com Kubitschek na banheira), de seu temperamento mulherengo irrefreável, humanizando a figura do sorridente político, com seus inevitáveis momentos de depressão e tristeza. Construído como um romance, as memórias palacianas de Autran Dourado não abrem mão das surpresas e mistérios. Autran não seguiu para Brasília com o amigo, ficou no Rio e ganhou um cartório de presente, o que permitiu que ele se dedicasse à literatura por toda a vida. 
Com tempo, Autran Dourado compôs uma obra profunda, variada e rica em invenção e humanismo. Era, possivelmente, o maior escritor brasileiro vivo, ainda que não publicasse há algum tempo e que suas obras não tivessem a mesma repercussão. O relativo ostracismo se devia em parte ao classicismo e rigor. Não se trata de uma literatura de consumo fácil, embora em nenhum momento se entregue a experimentalismos vazios. Uma de suas novelas, Uma vida em segredo, chegou ao cinema pelas mãos da diretora Suzana Amaral, em 2001. Sua obra completa está em catálogo pela Editora Rocco.
Carpinteirodas palavras
 
Para o crítico Fábio Lucas, Autran Dourado promovia uma profunda investigação sobre a ancestralidade. A professora Eneida Maria de Souza destaca o cuidado com a linguagem 
“Era o mais importante romancista brasileiro vivo.” É assim que o crítico literário e professor Fábio Lucas se refere ao amigo Autran Dourado. “O mais denso, o mais experimental e ao mesmo tempo o que fez a mais profunda investigação da ancestralidade do ser humano. Achava que o Prêmio Governo Minas Gerais de Literatura devia recair sobre ele. Sempre tive essa opinião, mas as comissões sempre mudam”, defendeu o crítico assim que soube do falecimento do escritor. 
Para Fábio Lucas, Dourado era dono de narrativa cuidadosa, tanto que também se destacou como estudioso dessa arte. “O romance dele nunca se afastava da aldeia imaginária que criou. No fundo, é o interior de Minas. Ele era tão obcecado com a obra e a perfeição que o sonho dele era ter algo que garantisse seu sustento, para que tivesse horas suficientes para se dedicar à literatura. Não abria mão da reflexão”, conta. 
É com orgulho que Fábio Lucas lembra uma homenagem que recebeu do amigo: o ensaio Uma poética de romance: matéria de carpintaria (1976) é dedicado a ele e a Antonio Candido. “Tenho guardadas mais de 50 cartas do Autran. Às vezes, ele mandava um livro e eu retornava apontando algumas imperfeições que encontrava na linguagem. Ele respondia. Certa vez, comentei que achava que ele estava se repetindo e disse que usava erroneamente a palavra esmoler”, conta. No caso, Autran a empregava como referência a quem pede esmola. Lucas observou que o correto era o contrário, ou seja, esmoler é quem dá esmola. “Lembro-me que ele tinha conversado com o Affonso Ávila (poeta que faleceu na quarta-feira) e confirmado que eu estava certo”, recorda. 
Entre as obras ficcionais, Fábio Lucas destaca o conflito de estilos e de gerações presente em Ópera dos mortos (1967). “É a história da mulher que durante o dia tinha um perfil e à noite outro. O noturno era de alta sensualidade e durante o dia dirigia um sobrado que era do pai. Há um conflito entre dois estilos que povoam a cultura mineira do século 18, o barroco e o neoclássico”, explica. 
Linguagem De acordo com a professora da Faculdade de Letras da UFMG Eneida Maria de Souza, a linguagem de Autran Dourado é um aspecto que chama a atenção no conjunto da obra. “Muito elaborada. Ao mesmo tempo em que ele trabalhou a questão do popular, do cotidiano, é muito semelhante a uma linguagem machadiana. Cuidadosa e ao mesmo tempo preocupada com o linguajar mineiro, do interior arcaico do Brasil”, comenta.
A professora também chama, atenção para os temas tratados. Os romances de Autran Dourado têm desde tramas sobre o período da Inconfidência assim como personagens mais simples, como a protagonista de Uma vida em segredo. Eneida também destaca o valor que Autran Dourado atribuiu ao século 18 no Brasil, principalmente a questão do barroco. “É uma Minas arcaica, sem grandes progressos, que se preocupava muito com o sentimento mineiro, do outro que não existia mais, das famílias decadentes”, analisa. 
 
Obras completas Romances
Teia (1947)
Sombra e exílio (1950)
Tempo de amar (1952)
A barca dos homens (1961)
Uma vida em segredo (1964)
Ópera dos mortos (1967)
O risco do bordado (1970)
Os sinos da agonia (1974)
Novelário de Donga Novaes (1976)
Armas e Corações (1978)
As imaginações pecaminosas (1981) 
A serviço del-Rei (1984)
Lucas Procópio (1985)
Um cavalheiro de antigamente (1992)
Ópera dos fantoches (1994)
Confissões de Narciso (1997)
Monte da Alegria (2003)
Ensaios
Uma poética de romance: matéria de carpintaria (1976)
O meu mestre imaginário (1982)
Um artista aprendiz (2000)
Breve manual de estilo e romance (2003)
Memórias
Gaiola aberta (2000)
Contos
Três histórias na praia (1955)
Nove histórias em grupos de três (1957) 
Solidão solitude (1978, reedição das novelas de Três histórias na praia e Nove histórias em grupos de três)
Novelas de aprendizado (1980)
Violetas e caracóis (1987)
Melhores contos (2001)
O senhor das horas (2006) 
 
Prima Biela
A novela Uma vida em segredo, de Autran Dourado, foi adaptada para o cinema por Suzana Amaral, em filme lançado em 2006. A personagem Biela foi interpretada por Sabrina Greve, vencedora do prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília. O longa conquistou outros quatro prêmios no Cine Ceará e recebeu cinco indicações ao Grande Prêmio Cinema Brasil. 


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