Morre aos 84 anos o escritor Affonso Ávila

Autor de livros de poesia, ensaios literários e estudos sobre a história mineira e o barroco brasileiro. Poeta deixa quatro livros inéditos

por Carlos Herculano Lopes 27/09/2012 08:26

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Maria Tereza Correia/EM/D.A Press - 5/5/09
(foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press - 5/5/09 )
Um dos grandes nomes da poesia brasileira do século 20, ensaísta e estudioso do barroco, Affonso Ávila morreu nesta quarta-feira, aos 84 anos, em consequência de uma parada cardíaca, em sua casa na Rua Cristina, no Bairro Santo Antônio, depois de ter ficado internado durante um mês no Hospital Felício Rocho. Filho de Lindolpho de Ávila e Silva e Liberalina de Barros Ávila, o escritor nasceu em Belo Horizonte no dia 19 de janeiro de 1928.

 Desde novo ligado à literatura, atividade que norteou sua trajetória, paralelamente ao estudo do barroco, no inícios dos anos de 1950 Affonso Ávila começou a ficar conhecido nos meios culturais de Belo Horizonte, quando juntamente com Fábio Lucas, Rui Mourão, Laís Corrêa de Araújo, Cyro Siqueira e outros jovens intelectuais fundou a revista Vocação, que marcou época na capital mineira. 
Tempo de efervescência cultural na cidade, logo em seguida, em 1952, ele foi nomeado auxiliar de gabinete do governador Juscelino Kubitschek, do qual ficaria amigo, a ponto de participar da sua campanha para a presidência. Em 1954, fez sua estreia na literatura com o livro O açude e sonetos da descoberta, com o qual ganhou o Prêmio Othon Lynch Bezerra de Mello. 
Em decorrência da visibilidade conseguida com o primeiro livro, Affonso foi convidado para participar do Congresso Internacional de Escritores, em comemoração ao 4º Centenário de São Paulo. Nesta ocasião, conhece o crítico literário Antonio Candido e Décio de Almeida Prado, dos quais se torna amigo, e, a convite deles, passa a colaborar com o recém-criado Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Em 1957, funda com Rui Mourão, Fábio Lucas e Fritz Teixeira de Salles a revista Tendência, até hoje referência para estudiosos da literatura mineira daquele período.
Se a literatura e o estudo do barroco, ao longo dos anos, mereceram mais a atenção de Affonso Ávila, ele também foi ligado ao jornalismo e chegou a ser diretor de A Folha de Minas, tendo passado ainda pela redação do Estado de Minas, onde colaborava com o suplemento dominical, que lançou uma geração de novos escritores mineiros. 
Dos vários prêmios que Affonso Ávila ganhou durante sua trajetória, dois foram significativos, como costumava dizer: o Cidade de Belo Horizonte e o Cláudio Manoel da Costa, em 1961, pela publicação do livro de poemas Carta do solo. Vem deste tempo sua ligação com os poetas concretistas Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos.
Outro acontecimento importante na carreira de Affonso Ávila foi a publicação do ensaio Resíduos seiscentistas em Minas, de 1967, clássico no estudo da história mineira. Dois outros livros seus que marcaram época foram o ensaio O poeta e a consciência crítica, de 1969, e Código de Minas & poesia anterior. No mesmo ano, durante o Festival de Inverno de Ouro Preto, sai o primeiro número da Revista Barroco, fundada por ele e que se tornaria leitura obrigatória em todo o mundo, para os estudiosos deste movimento artístico. Em 2005, já sob direção da filha, a historiadora Cristina Ávila, Affonso participa do lançamento do número 19 da publicação, comemorativo aos 35 anos da fundação da revista, para a qual escreve um texto inédito.
De acordo com seu filho, o poeta e jornalista Carlos Ávila o pai estava preparando três livros: uma reunião de seus trabalhos relacionados ao patrimônio histórico de Minas Gerais; uma seleção de poemas, que terá prefácio de Antonio Carlos Secchin; e um volume com os melhores sonetos da literatura brasileira. Está em fase de preparação um livro que reúne a correspondência de Affonso Ávila com o poeta Haroldo de Campos, organizado por Júlio Castañon Guimarães.
Affonso Ávila, que passou toda a vida em Belo Horizonte, era casado com a poeta Laís Corrêa de Araújo, que morreu em 2006, com quem teve cinco filhos, Paulo, Myriam, Carlos, Cristina e Mônica, e oito netos. O enterro será hoje, às 13h, no Cemitério Parque da Colina.
 
Trilemas da mineiridade
 
eu em mim
eu em minas
eu em minas de mim
eu em outros
eu em óxido
eu em óxido de outros
eu em texto de minas
eu em templo de minas
eu em tempo de minas
eu em parnaso de outros
eu em partido de outros
eu em paródia de outros
eu em onírico de mim
eu em omisso de mim
eu em opaco de mim
eu em camada de óxido
eu em câmara de óxido
eu em câncer de óxido
eu em modorra de minas
eu em montanha de minas
eu em montagem de minas
eu em análogo de outros
eu em anódino de outros
eu em anônimo de outros
eu em inepto de mim
eu em insípido de mim
eu em inóspito de mim
eu em fossa de óxido
eu em fóssil de óxido
eu em in-fólio de óxido 
 
Ele viveu a poesia 
 
Originalidade e senso crítico são algumas das características pessoais destacadas pelos amigos e admiradores de Affonso Ávila, um profundo
conhecedor do barroco  
 
Affonso Ávila foi um poeta capaz de pensar como poucos. E um pensador da cultura que se expressava com uma lírica própria, pessoal, que se traduzia em livros, revistas, manifestos e ação política. Em sua vida, cumpriu um programa exigente que estabeleceu um arco que vinha da tradição para alimentar a vanguarda. É na interface entre passado e futuro, poesia e ensaio, literatura e jornalismo, contemplação e política que sua obra maior foi sendo disposta ao longo do tempo e fica como testemunho de uma época e engenho de um homem.

A publicação do livro Homem ao termo, que reúne a obra poética de 1949 a 2005, se revela ao leitor de hoje como um maciço impressionante em técnica literária e ética intelectual. Do soneto clássico ao experimentalismo mais solto (e mais rigoroso), os poemas vão compondo um modo pessoal e ao mesmo tempo coletivo. Há eco dos poetas barrocos e inconfidentes, o exercício das possibilidades das palavras e dos ritmos; de um lado o testemunho histórico; de outro, a força transformadora de um olhar crítico e insatisfeito com o mundo. Poética e política.

Tradição Houve um tempo em que transformar a arte e o mundo faziam parte de um mesmo projeto. Affonso Ávila é homem desse tempo. Sua poesia, com gravidade e humor, vai sendo alimentada por inflexões que partem da visualidade para alcançar a palavra e os conceitos. O poeta, historiador do sentido, cava no chão de Minas as camadas que precisam ser decifradas, remexidas. O ofício do poeta foi propor um código para fazer valer seu avesso. 

Seus poemas mais radicais parecem se alimentar exatamente do maior convencionalismo. Enumera normas e lições para desconstruí-las no procedimento paródico, que faz da repetição do jogo de palavras um método para remover obstáculos e instaurar a liberdade. Abaixo os bancos, as famílias, as cartas, os códigos, a mineiridade.

O que o lirismo ilumina, o ensaísmo de Affonso Ávila aprofunda em rigor. Historiador do barroco, editor de uma das mais importantes publicações sobre o período (Barroco), de repercussão internacional, Ávila foi a fundo em muitas questões. Suas obras Resíduos seiscentistas em Minas e O lúdico e as projeções no mundo barroco trouxeram não apenas luz sobre a história mineira, mas, como nas contribuições verdadeiramente seminais, criaram conceitos que se inserem hoje no arcabouço interpretativo do passado brasileiro, com noções como “tropicalidade barroca” e “circularidade”.

Ávila está, dessa forma, para sempre presente na melhor tradição de nossa historiografia como um pesquisador que foi capaz de ampliar o universo de sentido. Mais que descobrir em documentos e livros informações e delas extrair análises perspicazes, o poeta e ensaísta incorporou ao barroco um novo campo de sentido, uma mentalidade, um modo de ser. Da mesma maneira que o musicólogo Curt Lange descobriu uma tradição musical nas Minas oitocentistas, Ávila inaugura um olhar sobre a sensibilidade de um período.

Trabalho Para Affonso Ávila, o barroco foi um tempo de assimilação de mentalidade e de formas, que vão se adaptando à realidade brasileira. Numa mesma visada, sua reflexão envolve a arte, a arquitetura, a pintura, a ecologia. No contexto dessa circularidade, a história econômica e a cultura passam a se sustentar, criando um diálogo que está na origem da constituição de nossa nacionalidade. Affonso Ávila foi ainda um pesquisador aberto para todos os desdobramentos do barroco na América e no mundo, do neobarroco centro-americano ao modernismo brasileiro, da formatividade barroca às curvas de Niemeyer. O poeta sabia ver no carnaval a contraface do triunfo eucarístico, nas cores de Aleijadinho um certo barroco da alegria.

Homem de combates, Ávila foi sempre um homem cordial. Foi com esse sentimento que formou grupos, sustentou dissidências, disputou projetos. Há uma fidelidade às ideias que se traduziram numa vida sempre muito reta, cercada de amigos, que davam à sua casa um ar de trincheira de ideias e poesia. Ao lado da mulher, Laís Correia de Araújo, na Rua Cristina, 1.300, no Bairro Santo Antônio, cumpriu com distinção suas tarefas do desejo e do pensamento, com seus filhos, todos marcados pela visita do espírito e da busca do conhecimento aprendidos pelo exemplo dos pais. 

Em uma entrevista ao Estado de Minas, quando completou 50 anos de vida literária, em 2000, fez questão de sintetizar sua existência em uma palavra: trabalho. Para logo em seguida, barrocamente, desdobrar o verbo em seu outro significante, a poesia. “ A poesia permeia tudo”, ensinou mestre Ávila com palavras e obras.
 
Código Nacional de Trânsito
conserve-se à direita
converse às direitas
como os cegos à direita
como o verso às direitas
como servo à direita
como os seus às direitas
como os sérios à direita
como o sexo às direitas
confesse-se à direita
com os céus às direitas

Crisálida
onde a vida viça
a um sol ou graça
e à luz se esgarça
forma ou flor
cambiante escante
fio de ar ou asa
pânica ou impávida
entanto ávida
de ritmo e instante
ao vir a ser de ser
aula de nascer
mínimo

Décadas
beber do mesmo vinho na mesma ânfora
e ainda me embriagar na sua cânfora

Museologia
é de ouro
é de prata
é de pernas preciosas 
 
Repercussão 
 
“Lamento muito o falecimento de Affonso Ávila. Foi um dos mais relevantes poetas de minha geração, notável estudioso e pesquisador do barroco, solidário companheiro de viagem literária e um permanente amigo ao longo de meio século.” 

Augusto de Campos, poeta, tradutor e ensaísta

“Affonso Ávila foi uma grande expressão da poesia de vanguarda no Brasil e se revelou o mais sensível intérprete da herança barroca de Minas Gerais. O barroco mineiro não só foi substância essencial do seu fazer poético como também matéria de uma interpretação lúcida e inovadora da construção da mineiridade. Ele desvendou características importantes da personalidade do mineiro e da formação cultural do Brasil. Retomando o primado visual da arte barroca, Ávila construiu uma poesia formalmente nova e original e contundentemente crítica.” 
 
Ângelo Oswaldo, jornalista e escritor, prefeito de Ouro Preto

“Foi (e é) uma referência da poesia feita em Minas. A revista Barroco, que ele editou, fez história. Estivemos juntos em vários momentos da poesia contemporânea brasileira, como na Semana de Poesia de Vanguarda. Depois seguimos rumos diferentes.”

Affonso Romano de Sant’Anna, escritor e poeta

“As primeiras palavras que me ocorrem quando penso no Affonso são dedicação, obstinação, compromisso, missão e generalidades. 
Ele foi um dos poucos intelectuais brasileiros 
que assumiram desde o primeiro momento 
de sua inscrição literária até o fim da vida o compromisso do papel social do intelectual. Alguém que não deve ficar encastelado em 
um gabinete, mas que coloca a potência 
criadora a serviço da inteligência, do compartilhamento do saber.”

Ricardo Aleixo, poeta

 “Ele não foi apenas um grande poeta. Foi um pesquisador da cultura mineira, especialmente do barroco. Uma pessoa que sabia unir poesia à pesquisa. Sempre foi um batalhador pela cultura. Fundou a revista Barroco, e sempre enfrentou muitas dificuldades para conseguir mantê-la viva e atuante. É uma das personalidades que mais marcaram a cultura, a literatura, a poesia brasileira e mineira da contemporaneidade.”

n Letícia Malard, professora emérita da UFMG
“Iniciamos nossos trabalhos juntos quando fundamos as revistas Vocação (1951) e Tendência (1956), que tiveram grande projeção na época em Belo Horizonte. Elas marcaram uma posição importante ao refletir sobre o momento que o Brasil estava passando e toda a sua preocupação nacionalista. Era uma literatura para refletir. Affonso era um amigo de longa data e sempre tivemos muita proximidade. Ele vai deixar 
uma extensa obra poética, que foi evoluindo 
ao longo do tempo, importante para os estudos do barroco no Brasil. Sua morte é um golpe 
para mim.”

Rui Mourão, romancista e ensaísta, diretor do Museu da Inconfidência 

“Para nossa geração, Affonso foi o guia mais importante. Éramos uma turma muito grande, que se formou nas décadas de 1960 e 1970, poetas e contistas. Ele e dona Laís nos recebiam na casa deles. Quase toda semana estávamos lá e conversávamos sobre tudo quanto é assunto ligado à literatura e à cultura. Sem dúvida, é um dos escritores mais importantes do Brasil, como poeta e pesquisador do barroco. Ele praticamente descobriu o barroco em Ouro Preto.”

Tião Nunes, poeta

“O Affonso Ávila representa para a cultura brasileira, e sobretudo de Minas Gerais, um valor enorme. Tem um significado muito revelante não só como poeta, mas como ensaísta e pesquisador do patrimônio cultural. A revista Barroco é a mais importante publicação sobre o tema no Brasil. A poesia dele é muito valiosa. Começou na década de 1950 e a cada momento foi se refazendo. Uma obra muito original e nada repetitiva. Falei com ele há alguns dias e me dizia dos novos planos, que estava organizando um livro de sonetos.”

Melânia Aguiar, professora

“A poesia do Affonso sempre foi de um rigor extremo na montagem das estrofes. Durante algum tempo ele frequentou bastante os concretistas de São Paulo, embora a expressão literária dele fosse mais discursiva. Sempre teve um toque muito personalista em sua elaboração. Para Minas, é uma perda irreparável. Aliás, em setembro se foram dois grandes: Fernando Corrêa Dias e Affonso Ávila. Um mês nefasto para nós escritores, porque perdemos duas altas figuras dedicadas à interpretação da cultura de Minas.”

Fábio Lucas, crítico literário 


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