Leandra Leal vira diretora em filme sobre oito artistas travestis

Premiado em festivais, o documentário 'Divinas divas' estreia hoje em duas salas de BH. Filme conta com a participação de Rogéria, Eloína dos Leopardos e Jane Di Castro

por Mariana Peixoto 22/07/2017 08:43
DAZA FILMES/DIVULGAÇÃO
Marquesa na cena final de 'Divinas Divas' (foto: DAZA FILMES/DIVULGAÇÃO)
É Marquesa, uma das oito personagens de Divinas divas, quem inicia e termina o documentário, estreia da atriz Leandra Leal na direção. Na primeira cena, um close explora o rosto muito maquiado da artista. Na última, uma imagem revela o momento em que ela, ao se despedir do público no palco, tira a peruca.


Morta em maio de 2015, aos 71 anos, Marquesa foi pioneira na luta pelos direitos dos travestis no país. Ao lado de Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos e Brigitte de Búzios, ela fez parte da primeira geração de artistas travestis no Brasil, que despontaram no Rio de Janeiro dos anos 1960.

Divinas divas
, que chega hoje aos cinemas – o longa estreia em duas salas em BH; confira endereços e horários na página 4 – conta a história de 10 personagens. As oito artistas, a própria diretora e, também, o Teatro Rival. Pois é para a casa de espetáculos inaugurada há 83 anos no Centro do Rio que essas histórias convergem.

Aos 34 anos, Leandra Leal não caiu de paraquedas no projeto. Sua trajetória como atriz tem início no próprio Rival. O teatro fundado por seu avô, Américo Leal, recebeu-a no palco ainda bebê, quando sua mãe, Ângela Leal, atuava numa peça. É a própria Leandra quem narra esta história de forma emotiva no filme.

Espetáculo O teatro, hoje administrado por ela e pela mãe, também acompanhou o nascimento da carreira das oito atrizes. Em 2004, Ângela Leal as reuniu novamente nos palcos para o espetáculo que dá título ao documentário. Dez anos mais tarde, foi a vez de Leandra remontá-lo, aí já com a intenção de utilizar a encenação como espinha dorsal do filme.

Como projeto de longa-metragem, Divinas divas teve início há sete anos. Não foi um começo fácil, a despeito do acesso às personagens, que rapidamente abriram as portas da memória diante de Leandra. “Ninguém queria patrocinar, pois o filme trata de dois tabus, gênero e velhice. Só nos dois últimos anos, quando houve uma explosão do tema, é que a coisa mudou um pouco. As pessoas estão curiosas com o assunto”, comenta a diretora.

No momento inicial, Leandra filmou os depoimentos. Além das oito artistas, Divinas divas também ouve pessoas próximas a elas. Jane Di Castro, por exemplo, aparece ao lado do marido, Otávio. Os dois estão juntos desde 1967, e o filme registra o momento em que o casal comemora sua união estável.

Eloína conta sua trajetória à frente do show A noite dos leopardos, na Galeria Alaska, que marcou durante muitos anos a cena underground carioca com nus masculinos. Rogéria, que Leandra afirma ser “um ponto fora da curva”, tem a história mais conhecida. Das oito, é a única que teve aceitação completa da família (a mãe é uma figura onipresente) desde o início da carreira.

Marquesa e Brigitte de Búzios, por seu lado, enfrentaram duramente a negação da família em aceitá-las como travestis. As duas foram internadas em sanatórios para se “curarem”. Entre risos e lágrimas, o filme vai acompanhando esses depoimentos enquanto assistimos aos ensaios para a montagem de Divinas divas (a nova versão do espetáculo ficou em cartaz por seis meses no Rival). Para a filmagem do show, Leandra fez uma campanha de financiamento coletivo, que arrecadou R$ 150 mil.

“Filmei Divinas divas espaçadamente durante quatro anos. Quando decidimos remontar o espetáculo, já tínhamos um roteiro preestabelecido. E durante a montagem o processo ganhou força. A relação que elas têm comigo é de amizade. E ela vem com essa relação que todas nós temos com a arte, pois o meu ofício é também o delas”, acrescenta.

DAZA FILMES/DIVULGAÇÃO
Rogéria se prepara para entrar em cena (foto: DAZA FILMES/DIVULGAÇÃO)
Leandra não quis, em momento algum, levantar bandeiras. E também nenhuma das oito o faz, ainda que suas próprias trajetórias de vida apontem para a luta contra o preconceito. “A Rogéria fala uma coisa que acho perfeita para a situação delas. Ela diz: ‘Eu não tenho bandeira, eu sou a bandeira.’ Todas elas fazem parte de uma geração politizada, mas elas não têm um discurso ideológico. Acho que Divinas divas é um filme sobre oito artistas, mas não é um filme militante. Pode ser que ele abra a cabeça de muita gente, o que lhe daria uma função política. Mas não é um filme político”, afirma Leandra.

O documentário teve sua première durante o Festival do Rio, em 2016. Saiu de lá com os prêmios do voto popular e Felix (voltado para produções com temáticas sobre diversidade de gênero). Exibido em outros festivais (em Minas foi visto em janeiro, na Mostra Tiradentes), ainda levou o prêmio de público do Festival South by Southwest, em Austin, no Texas.  “É tudo muito louco. No Rio, quando foi a estreia, estava muito nervosa. E o documentário ganhou o prêmio. No Texas, a mesma coisa, e eu não sabia como seria lá, ainda mais um filme não falado em inglês. Quando achei que tinha passado por todo o nervoso, vem agora a estreia. Estou meio travada, pensando até nos fatores externos que podem interferir no filme. Mas sei que fizemos um trabalho e que, agora, não há como controlar”, comenta ela.  

Uma das atrizes mais prolíficas de sua geração, Leandra já foi vista em dois filmes neste ano (a comédia La vingança e o suspense O rastro). Ainda há dois por estrear: Love film festival, romance previsto para 20 de julho que tem vários diretores: os brasileiros Vinicius Coimbra, Manuela Dias e Bruno Safadi e o colombiano Juancho Cardona. Apresentado como um documentário sobre personagens fictícios, foi filmado em Portugal, Brasil, Colômbia e EUA. Já em 24 de agosto estreia Bingo – O rei das manhãs, cinebiografia de Arlindo Barreto, o mais conhecido intérprete do palhaço Bozo, dirigida por Daniel Rezende.

Leandra comenta que já tem dois projetos (uma ficção e um documentário) para voltar a dirigir. “Ainda estou desenvolvendo. Só sei que eles vão correr em paralelo (à carreira de atriz). Fazer Divinas divas me motivou de várias formas. Como artista, criadora e cidadã. Para mim, só faz sentido dirigir um filme assim. Ele me acrescentou muito, mas me considero uma atriz. Uma atriz que dirige”, conclui.

MAIS SOBRE CINEMA