Longas boicotados do Cine PE chegam ao circuito comercial

Entre as produções, 'Real - O plano por trás da história' e 'O jardim das aflições', considerados o pomo da discórdia por possuírem um discurso 'conservador'

por Mariana Peixoto 23/05/2017 08:30
Matheus Bazzo/Divulgação
O documentário 'O jardim das aflições', dirigido por Josias Teófilo, retrata o filósofo Olavo de Carvalho. (foto: Matheus Bazzo/Divulgação)

A 21ª edição do Cine PE, que começaria nesta terça-feira, 23, no Cinema São Luiz, região central do Recife, continua em suspenso. Doze dias após a organização do evento, através de nota oficial, comunicar seu adiamento, uma nova data ainda não foi definida e deve ser anunciada até o fim desta semana.

O que se sabe, após polêmica que dividiu o meio cinematográfico brasileiro, é que quando o festival for realizado, ele não terá em sua programação pelo menos nove dos filmes selecionados. Estarão fora os seis curtas e um longa cujos diretores, em manifesto conjunto, comunicaram, em 10 de maio (dois dias após o anúncio oficial da programação), a retirada de suas obras do evento.

A decisão foi um protesto contra a seleção que, de acordo com os signatários, ''favorece um discurso partidário alinhado à direita conservadora e grupos que compactuaram e financiaram o golpe ao Estado democrático de direito ocorrido no Brasil em 2016''.

O pomo da discórdia foram dois longas. Um deles, que abriria, nesta terça, fora de competição, a exibição de longas, é Real – O plano por trás da história, de Rodrigo Bittencourt. Ficção sobre a criação do Plano Real, é baseada no livro 3.000 dias no bunker, do jornalista Guilherme Fiúza.

O outro filme, o primeiro da seleção de seis longas em competição, seria exibido na noite de quarta-feira, 24. O jardim das aflições, do pernambucano Josias Teófilo, é um documentário sobre o filósofo Olavo de Carvalho, considerado um dos mentores da nova direita. Independentemente de quando o Cine PE for realizado, nem Real e tampouco O jardim das aflições serão exibidos. O primeiro estreia em todo o país nesta quinta-feira, 25. O segundo inicia sua trajetória no circuito comercial no dia 31.

''O filme não perdeu, mas ganhou com a polêmica. Ela só ajudou um projeto que não tem nada a ver com PSDB, PT. É uma história em que o protagonista é um economista (Gustavo Franco, interpretado por Emílio Orciollo Netto)'', comenta Bittencourt. Com orçamento de R$ 8 milhões, Real – O plano por trás da história foi custeado através de crowdfunding e patrocínio direto, sem qualquer lei de incentivo cultural.

O jardim das aflições, um projeto muito menor, capitalizou ainda mais com a polêmica. Documentário filmado durante 10 dias e realizado através de crowdfunding (R$ 350 mil), o longa acompanha o cotidiano de Olavo de Carvalho em sua casa, em Richmond, no estado americano da Virginia.

SURPRESA

Josias Teófilo, que há seis meses se mudou para a Virginia, diz: ''O clima estava tão ruim para mim no Brasil, minha relação com todo o meio cinematográfico acabou''. Ele afirma que ficou surpreso quando o filme foi selecionado para o Cine PE. ''Mandei o filme (para seleção) para uns 20 festivais no Brasil. Imaginava que seria recusado por todos. E também imaginava que pudesse haver uma confusão na hora (que ele fosse exibido no Cine PE). Mas nunca pensava que fosse acontecer o que aconteceu.''

 

Nos dias posteriores à polêmica, houve artigos na imprensa e cartas de apoio ao manifesto dos cineastas, inclusive uma assinada por 30 críticos de cinema. E também muitas críticas alegando patrulhamento ideológico. Uma petição pública em apoio a O jardim das aflições tinha, até o fechamento desta edição, 24 mil assinaturas.

 

 

''O filme ganhou muita visibilidade. Vamos fazer uma cabine (sessão para jornalistas e críticos) no dia 30, em São Paulo. Já está cheia'', conta Teófilo. No dia 31, serão realizadas em São Paulo, Rio, Brasília, Curitiba e Porto Alegre sessões pagas do filme.

A equipe do projeto alugou salas de cinema e vendeu, através do site do documentário, ingressos a R$ 50. Das nove sessões para o dia 31, seis estão esgotadas. Como o filme não tem distribuidor, o lançamento no circuito comercial será pontual. Em 1º de junho, Teófilo entra com o filme em cartaz no Rio e em Porto Alegre, ao menos. Em BH, ele acredita que o filme deva entrar na primeira quinzena de junho.

Teófilo descobriu Olavo de Carvalho em 2008, através de um DVD de uma amiga. ''As opiniões dele são diferentes, então comecei a lê-lo e acompanhá-lo no Facebook.'' Segundo o realizador, o filósofo é uma pessoa muito aberta. ''A família é de um amor danado. Como ativista político, ele falava lá atrás sobre o que está acontecendo agora. E conversa sobre filosofia, cinema, literatura. Agora, temos diferenças. Ele é caçador. Eu sou vegetariano.''

 

POLÊMICA E MOBILIZAÇÃO

Num momento inicial, os realizadores que boicotaram o Cine PE decidiram fazer uma exibição aberta de seus filmes no Recife. Seria uma ação paralela ao festival. Como ele não vai ser realizado agora, a ideia foi colocada de lado.

''Os filmes serão exibidos, mas não sabemos ainda como vai ser. A gente está evitando dar entrevista, pois sofremos bastante com a repercussão'', afirma a realizadora Gabi Saegesser, de Recife, diretora do curta Iluminadas e uma das signatárias do manifesto. Segundo ela, todos os realizadores que assinaram a carta estão ''bastante conectados''. ''Já houve pedidos para exibição dos filmes em algumas cidades.''

 

A seleção do Cine PE reuniu duas produções mineiras. Sávio Leite, diretor do curta Vênus – Filó a fadinha lésbica, também assinou o manifesto. Diz-se ''desgastado'' diante da repercussão, tanto que não fala mais sobre o assunto.
A despeito da polêmica, o curta vem seguindo uma boa carreira no exterior. Lançado em janeiro no Festival de Berlim, já foi selecionado para 21 festivais estrangeiros. Leite comemora inclusive a seleção do curta, inspirado num texto de Hilda Hilst, para o Festival de Annecy, na França, o maior evento de animação do mundo.

A outra produção mineira selecionada para o Cine PE é o longa Los leones, de André Lage. O documentário acompanha durante um ano a vida do casal argentino Mariana Koballa, uma travesti, e seu companheiro, Raul Francisco. Os dois vivem na ilha Tres Bocas, a 40 quilômetros de Buenos Aires.

Lage manteve o filme no Cine PE. ''Por sua própria natureza, o filme é um gesto de protesto, pois ele dá voz a questões que dizem respeito às minorias. Ele precisa existir'', comenta o realizador, que não utilizou verbas públicas para o projeto.

Além de dirigir, Lage também fez a câmera, produção, direção de fotografia e montagem (dividida com uma montadora argentina). ''É um filme underground, punk, pois o que está em questão não é a Argentina europeizada, branca.''

 

Em Belo Horizonte, Los leones já foi exibido na Mostra CineBH, Forumdoc e na Mostra Sesc de Cinema, em que saiu vencedor, e vai integrar circuito de exibição em 10 cidades mineiras. No próximo domingo, 28, às 18h, no CCBB, ganha nova sessão na cidade, durante a Mostra do Filme Livre.

 

Conheça os filmes boicotados da Cine PE:

 

O jardim das aflições, dirigido por Josias Teófilo, retrata o filósofo Olavo de Carvalho.

 

Real – O plano por trás da história, do cineasta Rodrigo Bittencourt, seria exibido nesta terça, 23, na abertura da mostra. 

 

Los leones, do mineiro André Lage, registra a vida de um travesti e seu companheiro na Argentina. 

 

Vênus - Filó, a fadinha lésbica, animação de Sávio Leite, que retirou o filme da Cine PE.

 

 

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