Cineasta conta como escolheu momentos específicos para abordar o escritor Pablo Neruda e Jacqueline Kennedy

Pablo Larraín defende que todo filme traz um ponto de vista político e explica por que em 'Neruda' abordou um período em que foi ele foi cassado e preso

por Pedro Antunes/Estadão Conteúdo Mariana Peixoto 14/12/2016 20:03

Não há como encaixar uma vida inteira em apenas duas horas. Inteligentemente, o cineasta chileno Pablo Larraín, de 40 anos, fez em seus dois novos filmes recortes bem específicos da trajetória de duas personalidades do século 20.

Imovision/Divulgação
Gael García Bernal faz o papel do policial Óscar Peluchonneau, em jogo de gato e rato com o escritor (foto: Imovision/Divulgação )

Em Neruda, que estreia hoje no Brasil, o mais prestigiado diretor do Chile da atualidade encena um momento bastante específico do maior poeta daquele país. Em 1948, o presidente González Videla decretou a chamada Lei Maldita, que perseguiu os militantes comunistas. Na época, Pablo Neruda (1904-1973) era senador pelo Partido Comunista e foi colocado na clandestinidade. No filme, tem que fugir de um policial, que toma como missão de vida a caça ao poeta, então em fuga para o exterior.

Em Jackie, que tem estreia prevista para 2 de março, o cineasta, em sua primeira incursão em uma produção falada em inglês, acompanha os dias subsequentes ao assassinato do presidente John Kennedy (1917-1963). O ponto de vista é o da viúva, Jacqueline Kennedy (1929-1994).

Ambos os filmes causaram frisson na temporada recente de festivais internacionais. Neruda foi o indicado do Chile a uma vaga no Oscar de filme estrangeiro. É um nome forte, ainda mais após sua indicação, na mesma categoria, ao Globo de Ouro.

Jackie, que traz Natalie Portman no papel-título (a imprensa especializada já afirmou que a Academia de Hollywood só vai ter que definir quatro nomes para melhor atriz, pois uma das vagas já é dela), garantiu nesta semana uma indicação no Globo de Ouro (melhor atriz, evidentemente). Também recebeu troféus de direção no Festival de Toronto e roteiro (para Noah Oppenheim) em Veneza.
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Luis Gnecco interpreta o poeta chileno no filme Neruda, que estreia hoje em BH (foto: Imovision/Divulgação)

Ainda que se encaixe no gênero, Neruda é tudo o que uma cinebiografia tradicional não é. Com dois atores que já estiveram juntos em No (2012), o chileno Luis Gnecco (nada menos do que sublime em cena como o personagem-título) e o mexicano Gael García Bernal (como o policial Óscar Peluchonneau), o filme é como um jogo de gato e rato.

Com muitos elementos do cinema noir, Neruda vai traçando uma teia cheia de elementos teatrais (um mesmo diálogo é encenado em mais de um cenário, por exemplo). Peluchonneau é o narrador da história, mas é Neruda quem comanda a busca.

Misturando desprezo e admiração pelo poeta, o policial está sempre um pé atrás de sua vítima. Neruda, que segue na clandestinidade, ora com deboche ora com enfado pela perda de privilégios da vida burguesa, vai deixando pistas-poemas para seu perseguidor. Ao longo desse jogo, Larraín constrói um retrato dos dois homens, enfatizando os personagens em detrimento dos acontecimentos.


Na segunda-feira, pouco após as indicações de Neruda e Jackie ao Globo de Ouro, Larraín, de Santiago, conversou com o Estado de Minas. Confira a entrevista:

Em No (2012), você abordou um episódio particular da era Pinochet (a campanha “Não”, que movimentou o plebiscito de 1988 para decidir sobre a continuidade do governo do ditador). Agora, volta à política em dois filmes com pontos de vista incomuns. No caso de Neruda, o de seu perseguidor; no de Jackie, o da mulher de JFK, dias após o assassinato do presidente. Você gosta de contar pequenas histórias dentro de um grande tema?

Trabalho com ideias. Se elas forem políticas, ótimo. Acho que todos os filmes têm um ponto de vista político, independentemente de você estar tratando de política. No foi um projeto que (o escritor) Antonio Skármeta trouxe até mim. Imediatamente me envolvi nele. Já Neruda é um filme que meu irmão (Juan de Dios Larraín, produtor) começou a desenvolver. E, no caso de Jackie, foi o (cineasta) Darren Aronofsky que me ligou oferecendo. Filmes são oportunidades e, se forem políticos, direi sim a eles. Gosto de política, mas não se constrói uma carreira baseada em exatamente o que se quer.

Neruda nos relembra da tumultuada vida política na América Latina, num momento de perseguição ao comunismo. Como encara a situação recente dos países latino-americanos, com o avanço da direita e a derrocada da esquerda?

Você tem Cuba de um lado, tem também México, Venezuela, Brasil, Chile... Todos eles têm histórias bem diferentes enquanto países em desenvolvimento. Às vezes, há diferentes pontos de vista, o que os fazem muito divididos. O que quero dizer é que hoje não há uma voz da América Latina, como “a” voz. É uma discussão continental, e temos que compreender como os recursos devem ser distribuídos entre a população. Porque algo como 90% de tudo está na mão de alguns. Isto é uma consequência do capitalismo. Ou seja, a América Latina tem que ser analisada sob diferentes perspectivas. Estamos vivendo um momento importante, pois é agora que o futuro próximo está sendo desenhado para muitos destes países.

Já que estamos indo por esse caminho, como você encara a vitória de Trump nos EUA? O discurso anti-imigração o atinge de que maneira?

Sou chileno e vivo no Chile, mas tenho grandes amigos que moram nos EUA. Estou com medo do que pode acontecer. Ser presidente dos EUA é algo de imensa responsabilidade. Um corte, se houver, na relação com a população latina e com a de outros países é algo muito drástico. E, quando se toma uma atitude drástica, o caminho geralmente escolhido é o pior. Se você constrói violência, gera mais violência e acredito que Trump esteja indo por um caminho violento.

Em que medida Neruda é uma homenagem ao poeta e em que medida é uma homenagem ao político?

Crescemos ouvindo seus poemas, então Neruda é como da parte da paisagem chilena. Ele é muito conhecido enquanto poeta, mas não tanto enquanto político. Quisemos explorar esse lado, ainda mais porque sua obra trouxe tanta fé para a América Latina. E não podemos nos esquecer de que o que ocorreu no Chile ocorreu em outros lugares do mundo.

Neruda está indicado ao Globo de Ouro de filme estrangeiro e é um forte concorrente nesta mesma categoria no Oscar. Você tem alguma expectativa quanto ao Oscar (prêmio pelo qual já foi indicado, por No)?


Não, porque não faço filmes para receber prêmios, eles são uma consequência. Quando acontecem, é ótimo. Estou muito feliz por Neruda, ainda mais porque o filme será lançado nesta sexta nos EUA. Então, uma indicação quatro dias antes da estreia costuma levar mais gente ao cinema. Isto é importante, pois faço filmes para o público.

Em O clube (2015) você abordou um aspecto da Igreja Católica (padres acusados de pedofilia), que ganhou ainda mais atenção com o lançamento quase simultâneo de Spotlight, vencedor do Oscar. Como você vê a atuação do papa Francisco nesta questão?

Acho que o papa quer abrir a gaiola, a caixa da pedofilia na Igreja. Mas também acho que esse trabalho tem que ser feito todo dia. Não é algo que você cuida, acredita estar terminado e segue em frente. Numa instituição como a Igreja Católica, tão grande e poderosa, você tem que sempre ‘pequenos barcos’ que vão para longe fazer algo errado.

Falando sobre Natalie Portman em Jackie, li que você fez questão de que fosse ela, e somente ela, no papel. Como foi trabalhar com ela ainda mais em seu primeiro filme em inglês?

É verdade. Só poderia ser Natalie. No primeiro encontro, depois de uma longa conversa, ela disse sim para o projeto. A língua não foi um obstáculo. O que foi novo para mim foi trabalhar pela primeira vez com uma protagonista feminina. O grande desafio foi encontrar o tom. Agora, inglês ou espanhol, o que me interessa é encontrar o projeto certo. Por ora, vou descansar um pouco depois de um ano muito intenso. Só daqui a alguns meses vou entrar em uma nova aventura.

 

 

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