Começa hoje a 49ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Evento vai exibir nove produções com grande diversidade de olhares e boa dose de apelo político

por Ricardo Daehn 20/09/2016 08:49

No lugar de celebridades em cima de idealizado mundo do tapete vermelho, uma alta voltagem política – para um cenário de rearranjos de poder, na capital – forma a expectativa do 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

 

Ruidoso, por excelência e tradição, o evento mais afirmado, em termos de identidade candanga, começa hoje com infinitas possibilidades de um cinema nada escapista. 

 

Com malícia e reflexões em torno de martírios, citando apenas dois dos longas concorrentes aos troféus Candango, a festa promete debates acalentados pelos impasses da sociedade brasileira.

Festival de Brasília/Divulgação
'Rifle' foi dirigido pelo gaúcho Davi Pretto (foto: Festival de Brasília/Divulgação)
 

Pajés, exilados, cubanos, mulheres, fiu-fius desencorajados, artistas, loucos, gurus do porte de Julio Bressane e Jean-Claude Bernardet, além de criadores da capital (com uma vigorosa Mostra Brasília), darão o tom da celebração do cinema, que vai até o dia 28, com a reapresentação dos filmes premiados.

 

Vamos fazer um passeio pelos longas concorrentes da mostra competitiva do festival.

Rifle  
 “Os personagens do meu filme integram, na vida real, uma família de pequenos proprietários”, demarca o diretor gaúcho Davi Pretto, ao comentar da instável trajetória de Dione, que, na ficção, se encontra em uma sinuca de bico: a fazenda na qual vive está em risco.

 

Atento a questões geográficas – que calibram certo apartamento dos gaúchos em relação ao centro das decisões no país –, Pretto comemora a seleção para o festival do Centro-Oeste.

 

“Acho que temos, no Sul, filmes interessantes feitos principalmente pelos novos cineastas, que nunca conseguiram tanta visibilidade como agora”, diz. Nome de relevância no cenário nacional, vale ressaltar que Davi Pretto esteve na Sessão Fórum do Festival de Berlim, com o longa Castanha (2014).    

Malícia  
Depois de investir nos curtas Verdadeiro ou falso (2009) e Quase de verdade (2008), o diretor brasiliense Jimi Figueiredo parece aprofundar no revelar de falcatruas. “No mundo, a gente representa muito: fingimos muito, muito mesmo.

 

A gente sabe que os outros estão representando e a gente finge que acredita”, diverte-se, ao contar do novo longa estrelado por Viviane Pasmanter e Sérgio Sartório. No terceiro longa, Figueiredo conta as tramoias entre um dono de restaurante e um voyeur.

 

“Narro uma história e, no meio do filme, o espectador se dá conta de que não estava percebendo tão bem a história. Existe uma situação paralela ao enredo”, adianta Jimi Figueiredo. 

Festival de Brasília/Divulgação
Lima Duarte e Cida Moreira estão no elenco do filme 'Deserto' (foto: Festival de Brasília/Divulgação)
 

Deserto
O longa de estreia do também ator Guilherme Weber traz dois nomes de grande relevância na cultura brasileira: Lima Duarte e Cida Moreira. Integrante da Sutil Companhia de Teatro, Weber, que esteve nos longas Árido Movie e Cleópatra, conta no filme as desventuras de uma trupe de artistas.

 

Em livre adaptação do texto Santa Maria do Circo, criado pelo mexicano David Toscana, Weber reserva um verdadeiro oásis, cheio de suplementos e comidas, para artistas andarilhos, que terão a vida desandada, diante das benesses, nesta produção carioca.  

Elon não acredita na morte  
Estreante em longas, o diretor mineiro Ricardo Alves Jr. já obteve reconhecimento, em Brasília, com o curta Tremor (2013). Para a nova etapa da carreira, recorreu a talento saído da capital: o ator Rômulo Braga (O que se move), nome de peso para as artes cênicas.

Festival de Brasília/Divulgação
'Elon não acredita na morte' é o representante mineiro no Festival de Brasília (foto: Festival de Brasília/Divulgação)
 

“Gosto muito de aplicar, no teatro, a potência do cinema e, no cinema, pensar na capacidade ofertada pelo teatro. Filmo muitos plano-sequências, alguns de quatro minutos, em que o ator se move dentro de um quadro estanque”, comenta o cineasta, formado em Buenos Aires e aplicado na produção vinda de Minas Gerais.

 

No filme, o sumiço de uma mulher compromete a sanidade do marido. Clara Choveaux (Exilados do vulcão) também está em cena. 

Martírio  
Com um documentário que totaliza mais de duas horas e meia de projeção, o diretor Vincent Carelli dá continuidade ao veio indigenista, incrementando a incendiária produção audiovisual pernambucana.

 

Há sete anos premiado com o título de melhor filme por Corumbiara (no Festival de Gramado), Carelli – que formatou toda uma escola de integração entre índios e demais brasileiros com o projeto Vídeo nas Aldeias – traz para o palco do Cine Brasília a acirrada guerra entre o agronegócio e indígenas da tribo guarani kaiowá (Mato Grosso do Sul), em marcha contra massacres e a favoráveis à reconquista de terras sagradas.

O último trago
A sinopse do mais recente longa da dupla de criadores Luiz e Ricardo Pretti, além de Pedro Diógenes, imprime um tom quase de manifesto. Conclama a um protesto geral e prevê a união dos miseráveis.

 

Com os brasilienses Mariana Nunes (Liberdade, liberdade) e Rodrigo Fischer, a quinta experiência coletiva dos mesmos criadores de Estrada para Ythaca e Os monstros vem do Ceará.      

Antes o tempo não acabava
O diretor manauara Sérgio Andrade, reconhecido até no exterior pelo longa A floresta de Jonathas, e o parceiro de cinema dele, Fábio Baldo, são velhos conhecidos de Brasília pelos curtas-metragens Geru e Cachoeira.

 

Exibido no segmento Panorama do Festival de Berlim, Antes o tempo não acabava espalha o talento de Andrade e Baldo em funções múltiplas, da trilha sonora à edição de som, passando por montagem e roteiro.

 

Na trama, Anderson Tikuna interpreta um rapaz em choque com a cultura de berço, indígena. Ilhado na periferia da cidade grande, ele se desvencilha de rituais, mas há um inconformado líder, o Velho Pajé, no encalço dele.

A cidade onde envelheço  
Na produtora Anavilhana, ao lado das parceiras cineastas Luana Melgaço e Clarissa Campolina, a diretora mineira Marília Rocha tem feito história para o cinema brasileiro.

 

Com esta fita, concorrente aos prêmios Candango, a mesma diretora de A falta que me faz (2009) estende o alcance: esta produção ficcional contou com equipe portuguesa.

 

Na trama, Francisca se sustenta, no Brasil, com nostálgicas lembranças de Lisboa. Teresa, uma amizade antiga que é reatada, pode vir a mudar a cena pela vivacidade com a qual desvenda o Brasil. 

 

Vinte anos  
Três casais cubanos, duas décadas e seis destinos de esperanças, conquistas e também de atrasos compõem o novo documentário de Alice de Andrade, conhecida por qualquer cinéfilo como a filha de Joaquim Pedro de Andrade (Macunaíma).

 

Vencedora de prêmios na capital, com o curta Dente por dente (1994) e o longa O diabo a quatro (2004), aos 50 anos, Alice – que é formada na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San António de los Baños (Cuba) – adianta: “Meu filme trata de vida, de humanidade”.

Palavra de especialista
Eduardo Valente, curador das mostras do festival   

Relevância dos debates     

A comissão, no ponto de partida, olhou para os filmes mais adequados, levando em conta a tradição do Festival de Brasília, que veio a ser renovada e reforçada: trazer filmes que instigam o debate. Nisso, se passa pela política, pela estética.

 

São filmes muito diferentes, mas todos com potência. Sabemos da relevância dos debates gerados no dia seguinte. Pensamos nos filmes que iam esquentar as projeções à noite com desdobramento da experiência ainda no dia seguinte.

 

Nos filmes, passamos por paisagens não apenas do Brasil, mas também do exterior, com temas que alcançam até as transformações, nos últimos 20 anos, em Cuba. A discussão maior do evento talvez, em comum, seja de pessoas que se movimentam em busca de construir a própria identidade. Quem eu sou, a que pertenço?     

VERBA

R$ 3 milhões  
Orçamento do festival

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