Longa da cineasta Tata Amaral, 'Trago comigo', apresenta embate de gerações

Filme,em cartaz em BH, aborda os conflitos de um ex-guerrilheiro com a geração posterior à sua, que o vê como terrorista

por Mariana Peixoto 26/06/2016 09:00
PANDORA FILMES/DIVULGAÇÃO
Carlos Alberto Ricelli (no centro) interpreta o diretor de teatro Telmo, que monta um espetáculo sobre a resistência civil à ditadura militar brasileira e entra em conflito com os jovens atores do elenco (foto: PANDORA FILMES/DIVULGAÇÃO)

“Não tinha negro? Não tinha gente da periferia?”, pergunta o jovem. “Poucos”, responde o homem mais velho. “‘Maior’ elitista esse movimento,” resume o primeiro.

Tal diálogo é apenas um dos embates entre os personagens de Trago comigo, longa-metragem da cineasta paulista Tata Amaral, de 55 anos, recém-estreado no Cine Belas Artes. A conversa refere-se ao movimento de luta armada contra a ditadura militar do qual o homem mais velho fez parte e o mais jovem só ouviu falar nas aulas de história.

O cinema brasileiro volta invariavelmente aos porões da ditadura para lançar novas luzes no golpe que destituiu o regime democrático do país em 1964. “É muito interessante o filme ser lançado justamente no momento em que vimos um deputado (Jair Bolsonaro-PSC) fazer uma homenagem à única pessoa reconhecida como torturador no Brasil (o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra)”, afirma Tata Amaral.

Trago comigo levou sete anos para chegar às telas. O projeto nasceu (e foi exibido) como minissérie de quatro episódios produzida, em 2009, pela TV Cultura. “Foi um sucesso local, e as pessoas começaram a me pedir cópias. Vi que o assunto demandava um filme”, diz ela. Para o longa-metragem que chegou às telas, foi realizada uma nova montagem.

Carlos Alberto Riccelli interpreta a personagem que comanda a narrativa. Diretor de teatro em São Paulo que há anos não monta um espetáculo, Telmo foi militante de um grupo da luta armada. Quando, nos dias atuais, é convidado para dar um depoimento para um documentário sobre o período, se dá conta de que perdeu a memória da época da prisão e da clandestinidade.

Um antigo companheiro de militância, agora um burocrata da cultura, convida-o para montar um espetáculo que vai reabrir um antigo teatro. Trabalhando com um grupo de jovens atores que desconhecem sua trajetória na clandestinidade, Telmo começa a reviver o período através do espetáculo. Aos trancos e barrancos, estabelece um diálogo com a geração posterior à sua e ainda acerta contas com o próprio passado.

GERAÇÕES O embate geracional e a forma como ele é realizado – com o espetáculo sendo encenado no palco – aproximam a história do público, atualizando a discussão. Há um aspecto quase didático na fala da personagem de Riccelli, que tem que lembrar todo o tempo aos atores que seus personagens não eram terroristas, e sim guerrilheiros.

A quase ignorância do grupo de atores da peça ficcional acerca do tema reflete, na opinião de Tata Amaral, apenas uma parte da população jovem. “Ainda mais se você pensar nos jovens que estão hoje militando nas ocupações, que são muito engajados. Acho importante que as novas gerações conheçam a história para poderem refletir sobre a própria sociedade. O procedimento (de tortura) da época é o mesmo que ocorreu com o (ajudante de pedreiro) Amarildo (no Rio de Janeiro, em 2013), por exemplo.”

O filme ainda intercala depoimentos de sete ex-presos políticos que acabam legitimando a narrativa. Entre eles está a ex-guerrilheira Criméia Alice Schmidt de Almeida, torturada no sétimo mês de gravidez, e o jornalista Ivan Seixas, que relembra como sua mãe acompanhou, ao longo de uma noite, o marido ser torturado e morto.

“Ao ouvir esses depoimentos, vi que tinha que incorporá-los na dramaturgia. Não tinha me dado conta antes de uma coisa óbvia: uma parte das pessoas (que lutaram contra a ditadura) morreu, mas existem outras que precisam ser ouvidas, que têm uma memória muito viva. Não foi algo que aconteceu na Idade Média”, afirma a diretora.

Alguns dos depoentes inclusive citam os nomes de seus algozes – que foram suprimidos por tarjas pretas. “Mostrei para várias pessoas, que me disseram que eu não poderia colocar, porque elas não foram julgadas. E o que aconteceu no Brasil é que a anistia foi para todos (presos políticos, como também torturadores e demais agentes da ditadura). Ou seja, os crimes de tortura nunca foram investigados.”

Memória na tela


Não é de hoje que a produção cinematográfica brasileira se debruça sobre a ditadura militar. Desde a Lei da Anistia (1979), a cinematografia sobre a questão só fez crescer. O historiador Gabriel Amato, pesquisador do Núcleo de História Oral da UFMG e também um dos organizadores da mostra Ditadura na Tela (realizada a cada semestre), chama a atenção para a diferença de olhares que os filmes foram ganhando ao longo dos anos.

“Um marco é O que é isso, companheiro? (1997, de Bruno Barreto), da chamada Retomada do Cinema Nacional e adaptado do livro (homônimo) do Fernando Gabeira, que já tinha feito sucesso. Apesar dos problemas, é um filme importante, pois ajudou a construir a memória hegemônica da ditadura”, comenta Amato.

Essa memória, de acordo com o historiador, apresenta o Estado como opressor e a sociedade como vítima ou resistente a ele. “Outros comportamentos mais ambíguos são deixados de lado”, pontua Amato. Para ele, a produção que apresenta a memória hegemônica acaba mostrando a luta armada como algo ingênuo, quase infantil, e não como experiência dolorosa.

Mais recentemente, afirma o historiador, a produção audiovisual vem abrindo o leque. “O documentário Reparação (2009, de Daniel Moreno) apresenta uma memória positiva do período. É uma tentativa de desconstrução da memória hegemônica, ao mostrar pessoas que foram vítimas da luta armada.”

Na opinião do historiador, grupos sociais menos lembrados na produção audiovisual sobre a ditadura também ganharam as telas mais recentemente. “Os artistas da contracultura, em que os costumes eram contrários a toda a percepção conservadora da ditadura, estão em filmes como Tatuagem (ficção, 2013, de Hilton Lacerda) e Dzi Croquettes (documentário, 2009, de Raphael Alvarez e Tatiana Issa).”

Série a caminho

 

Tata Amaral completa neste ano três décadas de carreira e 20 anos do lançamento de seu primeiro longa-metragem, o premiado Um céu de estrelas. Trago comigo é o segundo mergulho da diretora na ditadura militar. Seu longa anterior, Hoje (2011), estrelado por Denise Fraga, conta a história de uma ex-militante que compra um apartamento com a indenização que recebeu pelo assassinato do marido, ex-guerrilheiro, durante o regime de exceção. A cineasta continua a trabalhar sobre o tema.

Seu novo projeto é uma série documental baseada no livro A mulher que era o general da casa – Histórias da resistência civil à ditadura (2012), do jornalista Paulo Moreira Leite. “O que se sabe é que a gente não resolveu este passado. As histórias estão aí para serem contadas”, diz ela.

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