'O outro lado do paraíso', que estreia hoje, narra a história de família que passa pelo golpe de 1964

Baseado em relato autobiográfico de Luiz Fernando Emediato, filme tem trilha sonora assinada por Milton Nascimento

por Mariana Peixoto 02/06/2016 09:30
Europa Filmes/Divulgação
(foto: Europa Filmes/Divulgação)
Entre as milhares de famílias que sofreram na pele com o golpe militar estavam as do jornalista e editor Luiz Fernando Emediato e do cineasta André Ristum. O primeiro era um garoto de 12 anos que, em 1963,  havia deixado Bocaiuva (Norte de Minas) com a família para viver em Taguatinga, onde o pai trabalhava em obras da recém-inaugurada capital federal. Já o segundo nem havia nascido.

Com o golpe, o pai de Emediato, Antônio Trindade, dono de um caminhão que havia rumado para o Centro-Oeste em busca de um futuro melhor, é preso. Sua mulher e seus filhos voltaram para Bocaiuva. Os pais de Ristum, militantes estudantis em Ribeirão Preto, tiveram outro destino. O pai acabou preso e, mais tarde, com o endurecimento do regime, acabou se exilando com a mãe na Europa. Teve passaporte cassado e viveu por sete anos como apátrida. Ele e a família só voltaram ao Brasil com a anistia, em 1979. Ristum cresceu na Europa com saudade de um lugar que não conhecia.

Dessa maneira, O outro lado do paraíso, que estreia hoje, é um filme caro a Emediato (autor da história) e Ristum (diretor do filme) por questões muito pessoais. Adaptação do livro homônimo, lançado no início da década de 1980, é um relato infantojuvenil em que Emediato conta a trajetória de sua família no início dos anos 1960, em meio aos sonhos de um pai aventureiro. Foi escrito como uma maneira de se reconciliar com o pai, com quem não falava há uma década.

Em tom fabular, o filme tem início em 1963, no interior de Minas. Antônio Trindade (Eduardo Moscovis), um aventureiro pai de três filhos, sai pelo país em busca de Evilath – lugar paradisíaco, presente em vários momentos da Bíblia. Descobre que Brasília poderia ser a chance de um futuro melhor. Vende sua casa, compra um caminhão e parte com a família.

Filho do meio, Nando (Davi Galdeano) é o que mais sofre com a mudança. Deixa no vilarejo sua primeira namorada. Introspectivo, curioso e algo sonhador como o pai, ele conduz a trajetória da família, que logo se estabelece em Taguatinga. Lá, eles se relacionam com moradores locais: um sindicalista, um padre com ideias progressistas, e uma professora que apresenta a literatura ao garoto. O golpe, que a família assiste de perto, acaba com toda a estrutura que haviam criado, a despeito das dificuldades.

Com um protagonista carismático – Galdeano, hoje com 14 anos, foi escolhido entre mais de 500 atores-mirins e segura a narrativa do início ao fim –, o filme permite duas leituras. A mais imediata é a do próprio Nando, os sonhos e paixões de um adolescente no Brasil dos anos 1960. A outra, é de refletir sobre um país que viu sua história interrompida por mais de uma vez – e aí, analogias com o momento atual são mais do que pertinentes. “As semelhanças são inequívocas, mas cada um interpreta como quiser”, comenta Ristum, que estreou na direção de longas com Meu país (2011), sobre um homem que volta ao Brasil após viver na Itália e reencontra sua família.

ACHADO
O elenco, muito homogêneo, destaca ainda Simone Iliescu (a mãe de Nando), Jonas Bloch (o avô), Camila Márdila (sua irmã mais velha). O outro lado do paraíso foi rodado no Distrito Federal, o que reativou o Polo de Cinema de Sobradinho, abandonado há alguns anos. E também traz imagens históricas e inéditas. Para aproximar o público do período histórico, Ristum utilizou arquivos de vários documentaristas. O mais rico deles foi do fotógrafo Jean Manzon (1915-1990), inovador do fotojornalismo brasileiro que atuou muito próximo ao poder.

“Quando estávamos na montagem, nosso finalizador entrou em contato com o titular do acervo do Manzon, perguntando se ele tinha alguma coisa do período. Comentou que na semana anterior havia encontrado um rolo (de filme cinematográfico) escrito apenas 1964, um material que nunca tinha visto. Quando o material chegou, o montador me ligou dizendo que eu não tinha noção do que havia aparecido. Eram 11 minutos – e usamos quatro no filme – com planos fechados do Jango falando, da Marcha da Família, dos tanques desfilando pela Esplanada dos Ministérios. Era um material super bem fotografado, com uma conservação incrível e um olhar cinematográfico”, comenta Ristum.

Finalizado em 2014, O outro lado do paraíso foi exibido no último ano e meio no circuito de festivais do Brasil e do exterior. Levou prêmios nas edições de 2015 de Gramado e Brasília, além de Trieste, na Itália e Catalunha, na Espanha.

A mineiridade da família Trindade é enfatizada pela trilha sonora. Assinada por Patrick de Jongh, conta com participação de Milton Nascimento. Ao longo da narrativa, o cantor faz vários vocalises. Há ainda uma cena marcante, quando Nando inaugura a biblioteca que criou em Taguatinga, emoldurada por uma versão desconstruída de Clube da esquina 2 (condição que Milton colocou para participar do projeto). Ao final, quando os créditos sobem, ele ainda interpreta Ventos irmãos – canção de Patrick composta para o filme. Depois de décadas vivendo no Rio de Janeiro, Milton voltou a Minas: mudou-se este mês para Juiz de Fora.


PROJETOS

O outro lado do paraíso é a primeira incursão de Luiz Fernando Emediato no cinema. E deve haver outras. Dois livros da Geração Editorial, criada por ele, serão adaptados para o cinema, em produção com a Gullane Filmes. Um dos projetos será dirigido também por Ristum. Emediato só não fala quais são os títulos que vão ganhar o cinema: “Serão dois filmes inspirados em best-sellers da editora sobre política e corrupção”.

Três perguntas para...
Milton Nascimento
Cantor

O que lhe convenceu a participar da trilha do filme?
Emediato é meu amigo há mais de 30 anos. Primeiro, ele me disse que seria uma pequena participação, mas, depois que foi lá em casa junto com o diretor André Ristum e o Patrick, fiquei apaixonado pela história. E não tive como me limitar a apenas uma música. Se eu pudesse cantava o filme todo. A canção do Patrick (Ventos irmãos) é uma coisa sem palavras de tão bonita e, quando ele me mostrou, aceitei na hora o convite para gravar.

O cinema sempre foi muito presente em sua vida. Além de produzir música para cinema, você já atuou como ator. Tem vontade de participar de alguma nova produção?
Estou aberto para qualquer produção de cinema que me chamarem, tanto para atuar quanto para colocar músicas minhas na trilha. Minha experiência com cinema vem desde o começo da minha carreira, e meu maior prazer foi ter trabalhado com gênios como Ruy Guerra, Cacá Diegues, Werner Herzog, Claudia Cardinale, enfim, é uma história de que até hoje me recordo com muita alegria.

Acha que a história de O outro lado do paraíso dialoga diretamente com o momento atual pelo qual o país está passando?
Este filme deveria ser exibido em todas as escolas do Brasil. Trata-se de uma parte de nossa história que não pode ser encontrada em livro nenhum. E tenho a certeza de que o entendimento do que nós vivemos hoje seria bem mais concreto a partir da visão que o filme nos passa.

MAIS SOBRE CINEMA