Profissionais da legenda contam desafios das palavras em movimento

Internet alterou a prática; rapidez, pesquisa e precisão são requisitos do ofício

por Ana Clara Brant 06/03/2016 06:00

A grande aposta, filme que levou o Oscar no último domingo de melhor roteiro adaptado, e que narra a história de investidores que se deram bem com a crise econômica de 2008, estreou no Brasil em 14 de janeiro. No entanto, mal sabem os espectadores o quão trabalhoso e meticuloso foi traduzir e legendar para o português a produção com todo o seu “economês”.

 

Com um currículo de mais de 500 filmes traduzidos, como O resgate do soldado Ryan, De olhos bem fechados, Beleza americana e A garota dinamarquesa, a tradutora de legendas Rossana Pasquale Fantauzzi se viu diante de um imbróglio. “Pela primeira vez na minha carreira, pensei em desistir, porque achei que não ia dar conta. Além de o prazo ser muito curto – nosso grande desafio –, esse longa tem vocabulário complexo e um contexto que não domino. Mas, no fim, persisti e o resultado, modéstia à parte, ficou muito bom”, ressalta.


Nesse projeto, Rossana teve que contar com a consultoria de um profissional da área de economia e finanças. Ela revela que, em toda obra que trabalha, faz levantamento detalhado sobre o assunto abordado. “É um ofício bem artesanal. Se vou traduzir e legendar sobre aviação, guerra ou qualquer época específica, faço uma pesquisa esmerada. As pessoas não têm ideia de como é o nosso trabalho. Envolve coisas demais até a legenda estar ali, prontinha”, complementa.

Paramount/Divulgação
Termos em ''economês'' complicaram a missão de legendar 'A grande aposta' (foto: Paramount/Divulgação)
Talvez esse aprofundamento nas temáticas e o aprendizado sejam os aspectos mais fascinantes da profissão. José Roberto Valente, responsável por traduções e legendas dos realities American idol e The voice, frisa que não existe filme, programa ou documentário com que ele não aprenda algo. “Tem sempre uma palavra, uma expressão, uma gíria, um assunto diferente, uma informação nova... Por exemplo, estou traduzindo um filme que fala sobre o genocídio dos armênios durante a Primeira Guerra. Aprendo muito mais pesquisando sobre o tema do que nas aulas de história dos tempos de escola. Esse é um aspecto bem legal desse trabalho”, salienta.


Cláudia Bertolucci também faz trabalhos para a TV. Ao comentar sobre as distinções em traduzir para a telinha e para a telona, explica que a diferença básica é o número de caracteres que se pode usar, pois, em geral, na TV são utilizados menos caracteres por linha, justamente por causa do tamanho da tela. Também é preciso ficar atento à adequação da linguagem.


“Na TV, raramente temos autorização para escrever palavrões. Sempre precisamos suavizar a linguagem. No cinema, de modo geral, temos mais liberdade. E também é comum adequar o vocabulário ao momento histórico retratado. No caso dos realities, a concisão é mais importante ainda, porque as pessoas falam o tempo todo e acaba ficando cansativo se a legenda não for bem redondinha”, esclarece.

NBC/Divulgação
Traduzir programas de TV como o 'The voice' garante aos profissionais a oportunidade de aprender algum termo específico a cada novo trabalho, além de aumentar o conhecimento pessoal (foto: NBC/Divulgação)
INTERNET É notório como as novas tecnologias facilitaram bastante a vida desses profissionais. A tradutora e intérprete Flávia Fusaro lembra que, quando ingressou nesse mercado, seus clientes – as produtoras e distribuidoras – enviavam as fitas pelo correio e em VHS. Na maioria das vezes, sem roteiro. “Fora que o correio, às vezes, segurava o material porque vinha do exterior. Era complicado. Ao longo do tempo, os filmes foram digitalizados e, com a internet, a coisa engrenou mesmo. Atualmente, o trabalho é praticamente virtual. Recebemos o filme via e-mail, traduzimos o roteiro e reenviamos as traduções”, explica Flávia, que também atua como tradutora simultânea. “Nesse nicho, então, o dinamismo, a concentração e a rapidez são essenciais”, acrescenta.


Cláudia Bertolucci é outra que destaca os avanços tecnológicos. Ela recorda que, antigamente, era preciso buscar a VHS que seria traduzida e, com ela, o roteiro em papel – um calhamaço. “A pesquisa era feita em livros, revistas, dicionários, enciclopédias. Tinha uns 20 dicionários e umas três enciclopédias. Terminado o trabalho, era preciso levar para o cliente o disquete com a tradução – e devolver o material, claro. Agora, baixamos tudo por meio de servidor, sem precisar sair de casa, e enviamos a tradução por e-mail. É possível trabalhar de qualquer lugar do mundo. Fora que a internet facilitou muito as pesquisas. Hoje, dá para terminar um trabalho com muito mais rapidez”, celebra.


Com a rede mundial, também veio a pirataria. No entanto, a maior parte dos tradutores oficializados não vê isso como ameaça. Sabrina Martinez é tradutora, revisora de legendas e diretora do Gemini Training Center (GTC), com sede no Rio de Janeiro, que capacita profissionais dessa área.

 

Ela não sentiu diferença com as chamadas “legendas piratas” e conta que distribuidores de cinema e canais de TV acabam procurando quem é credenciado e tem nome no mercado.

 

“Claro, sempre tem quem confunda profissionais com amadores e ponha todo mundo no mesmo saco. Se há algo que a pirataria fez, foi chamar a atenção para a importância das legendas de qualidade. Muita gente que começa fazendo legendas amadoras acaba se apaixonando e procurando cursos para se qualificar e seguir na profissão”, revela.

INUSITADO Casos curiosos e interessantes não faltam. Sabrina comenta que a situação mais surreal que já vivenciou foi quando os roteiros ainda eram impressos. Ela recebeu um filme sueco para traduzir e o roteiro estava em inglês. A tradução ia bem até que quando virou uma das páginas, percebeu que a tradução em inglês não estava batendo com as imagens no vídeo. “Foi aí que notei: faltavam cinco páginas de roteiro, o que equivalia a uns dois ou três minutos do longa. Minha chefe entrou em contato com a distribuidora pedindo as páginas que faltavam. Só que eles demoraram a mandar e o filme já tinha data de exibição definida. A solução? Tive que inventar aqueles minutos de filme, porque também não conseguimos um tradutor de sueco a tempo. A cena era uma conversa entre pai e filho. O mais curioso foi que, depois da primeira exibição, as páginas que faltavam finalmente chegaram e, quando comparei a tradução ‘de verdade’ com a minha, elas estavam bem parecidas”, diverte-se.


O tradutor José Roberto Valente viveu momento bizarro, quando traduziu documentários sobre criaturas do mar. Um dos episódios se chamava “A lula assassina”. “Fiz a tradução, enviei o arquivo e eles devolveram as legendas revisadas com algumas observações e um pedido: trocar lula por calamares para não ter problemas com o presidente que acabara de ser eleito. Nem preciso dizer que foi meu último trabalho pra eles”, recorda. Outro caso foi quando o chamaram para traduzir South Park: Maior, melhor e sem cortes. “A orientação era não usar gírias nem palavrões. Acredita nisso? South Park sem gírias e palavrões? Fiquei inconformado, tentei argumentar, mas não adiantou. Resolvi encarar aquilo como desafio e traduzi o filme da maneira mais ‘higienizada’ possível. Ficou ridículo, é óbvio. Mas foi exibido assim mesmo. São coisas que fazem parte, né. Fazer o quê?”, conclui.

 

O UNIVERSO DO TRADUTOR
» Legendas costumam ter duas linhas, mas não podem ultrapassar 32 caracteres por linha, no caso da TV; 36, no caso do cinema; e 42 para DVD e blu-ray. Se a legenda “piscou”, o espectador não conseguir ler. Além de ser bem traduzida, tem que dar tempo para que seja lida.

» O prazo é o maior desafio. O trabalho em um filme, geralmente, leva duas semanas. No caso de festivais, o tradutor vira a noite para entregar as legendas no dia seguinte.

» Quem determina a tradução do título do filme é o departamento de marketing da distribuidora ou produtora, e não o
tradutor de legendas.

» O tradutor de legenda não repassa o texto para os dubladores, porque outra técnica é usada. As palavras têm que ser sincronizadas às batidas de boca dos atores.

» Há apenas 10 anos os profissionais passaram a ter nomes creditados no fim do trabalho, o que valorizou a categoria.

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