'Outro sertão', filme sobre a passagem de Guimarães Rosa pela Alemanha nazista, ganha sessões em BH

Documentário conta a história de como Guimarães Rosa e Aracy de Carvalho distribuíram vistos para o Brasil a judeus perseguidos pelo nazismo

01/02/2016 09:00
FOTOS: VAC/DIVULGAÇÃO
Outro sertão exibe entrevista para TV concedida por Guimarães Rosa ao crítico Walter Höllerer, em 1962, na Alemanha (foto: FOTOS: VAC/DIVULGAÇÃO)
No primeiro semestre de 1939, o consulado do Brasil em Berlim não emitiu sequer um visto de turista a judeus. No mesmo período, o consulado do Brasil em Hamburgo emitiu 96 vistos de turista a judeus.


A disparidade dos números, no início da Segunda Guerra Mundial, deve-se a João Guimarães Rosa (1908-1967), vice-cônsul da representação brasileira na cidade do Norte da Alemanha entre 1938 e 1942. Junto à chefe do setor de vistos, Aracy de Carvalho, que veio a se tornar sua segunda mulher, o escritor foi responsável por emitir o documento que salvou a vida de centenas de judeus.

É esse o foco do documentário Outro sertão. Resultado de minuciosa pesquisa realizada por Adriana Jacobsen e Soraia Vilela (esta mineira de Belo Horizonte), o longa-metragem foi lançado em 2013, quando venceu o prêmio especial do júri do Festival de Brasília e o de público da Mostra Internacional de São Paulo.

Permanece inédito no circuito comercial, em razão de “pendências estritamente burocráticas”, afirmam as diretoras. Em BH, o título foi exibido uma única vez, em agosto de 2014. Nesta semana, ganha outras três sessões (duas no Cine Humberto Mauro e uma no CCBB, com a presença de Soraia Vilela), durante a mostra Cultura, Arte e Poder do Verão Arte Contemporânea.

Com o cerco aos judeus cada vez mais intenso – a partir de setembro de 1941, por exemplo, o regime nazista obrigou todos ao uso da estrela amarela de seis pontas com a palavra “judeu” escrita –, aqueles que ainda viviam em solo alemão buscavam fugir. Não demorou muito para que chegasse a notícia das facilidades que havia na representação brasileira.

Dividido em capítulos – A chegada, O amigo, O diário, O escritor, O diplomata, O alarme e A partida –, o filme vai descortinando, por meio de cartas, escritos, depoimentos, fotos e imagens, a passagem de Rosa pelo país europeu. Os escritos do autor são narrados no filme pelo ator Rodolfo Vaz.

A relação do escritor com a Alemanha começou com um certo deslumbre, como ele escreveu na primeira carta ao pai. A animação inicial deu lugar ao desconforto, decepção e horror com o início da guerra e a perseguição aos judeus. Só deixou o país em 1942, na esteira do rompimento do Brasil com a Alemanha. Antes, porém, passou cem dias detido em Baden-Baden.

Com depoimentos de sobreviventes e seus herdeiros – Ellen Kazaschinsky, por exemplo, recorda, em detalhes, o momento em que ela, sua irmã e sua mãe foram salvas graças ao visto emitido em Hamburgo –, o documentário tem como maior trunfo uma entrevista que Rosa concedeu, em 1962, ao crítico Walter Höllerer para uma TV alemã. O material, bastante explorado pelo documentário, é um raríssimo registro de uma imagem em movimento do escritor.

Três perguntas para...

Adriana Jacobsen e Soraia Vilela/documentaristas

 

Como foi o processo de pesquisa do documentário?
Soraia Vilela – Partimos de uma curiosidade pessoal: como estrangeiras na Alemanha e colegas de trabalho na época (ambas eram colaboradoras de Deutsche Welle), conversamos um dia sobre a passagem dele pelo país. Conhecíamos os contos publicados no livro Ave, palavra e tínhamos visto alguma referência ao trabalho com os Diários, na época mantidos no Acervo dos Escritores Mineiros da UFMG. Eles não podiam ser escaneados ou copiados. Em uma visita, de passagem por Belo Horizonte, transcrevi à mão todo o material. Partindo dali, rastreamos os lugares mencionados, buscando pistas, tentando encontrar pessoas citadas ou seus descendentes.

Adriana Jacobsen – Um dos achados mais importantes foi uma pasta com o nome dele contendo toda a troca de correspondência sobre Guimarães Rosa entre a Gestapo e o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha. Foi um achado incomum, já que os arquivos da Gestapo sumiram ou foram destruídos. Outro momento importante da pesquisa foi quando identificamos vivos em Hamburgo os protagonistas do conto O mau humor de Wotan, do livro Ave, palavra. Eles não conheciam o conto, nem sabiam que Rosa havia se tornado escritor, só se lembravam dele como “o cônsul”.


A entrevista que Guimarães Rosa concedeu a uma TV alemã em 1962 é peça-chave do filme. O acesso a esse material terminou por definir o tom do filme?
Soraia – Quando recebemos, depois de longas negociações, o material digitalizado, foi uma grande surpresa. Entendemos ali que nosso trabalho deveria levar à realização de um filme, pois descobrimos que não havia praticamente nenhuma outra imagem em movimento de Guimarães Rosa, nem qualquer outro material no qual ele, um escritor avesso a entrevistas ou aparições públicas, falasse de maneira tão detalhada sobre a própria obra. Aquelas imagens eram essenciais constituição do filme.


Além de Outro sertão, foi lançado recentemente o livro Justa – Aracy de Carvalho e o resgate de judeus, de Mônica Raisa Schpun (2014). Há outros registros sobre a passagem do casal por Hamburgo?
Soraia – Existem algumas teses acadêmicas que citam a passagem. No entanto, o período é citado de maneira bastante superficial. Estamos no momento enviando um projeto de site para editais de fomento no país, pois reunimos em torno de 120 horas de material, temos centenas, se não milhares de páginas de documentos arquivadas.

Adriana – Além das entrevistas, temos cartas, fotos e toda uma gama de informações desconhecidas no Brasil. Estudamos as diferenças dos diversos consulados brasileiros na Alemanha durante o nazismo. Nos arquivos alemães, encontramos referências ao intenso trabalho de propaganda do regime nazista no Brasil. É importante que isso se torne público. As histórias dos emigrantes judeus que fugiram para o Brasil por meio do Consulado de Hamburgo são de uma riqueza extraordinária. Lembro-me de histórias particulares, como a de um senhor que saiu de um campo de concentração, sobreviveu a um naufrágio e aportou semanas depois no meio do carnaval em Santos. Uma experiência surreal.

Eram pessoas que vieram sem posses e tiveram que reconstruir a vida aqui, do zero. Um tema atual, se levarmos em consideração a quantidade de refugiados no mundo de hoje.


OUTRO SERTÃO

Documentário de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela. Sessões nesta segunda e quarta, às 19h, no Cine Humberto Mauro, e sexta, às 15h, no CCBB. Entrada franca (os ingressos devem ser retirados meia hora antes de cada sessão).

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