'O clã' leva às telas a história real de gangue familiar de classe média alta argentina

Os atos criminosos acobertados pelo regime militar vieram a público no início da redemocratização do país, nos anos 1980

por Carolina Braga 10/12/2015 08:46

FOX FILMES/DIVULGAÇÃO
Guillermo Francella interpreta o patriarca do clã de sequestradores e assassinos que age publicamente como uma família harmônica e pacífica no longa de Pablo Trapero (foto: FOX FILMES/DIVULGAÇÃO)
O cineasta argentino Pablo Trapero agora pode se dizer um homem conectado graças ao seu novo filme, O clã. Antes dele, o diretor de Leonera (2008) e Abutres (2010) era avesso às redes sociais. Mas a curiosidade sobre como seria recebido esse longa baseado em um fato policial que abalou seu país na década de 1980 falou mais alto. “Não queria esperar o dia seguinte para ler no jornal. No Twitter, as pessoas já podiam contar o que acharam”, diz, hoje se divertindo com a ansiedade que o impulsionou a abrir uma conta no microblog.

Mesmo sendo um diretor de renome internacional, ele diz que foi um parto conseguir parceiros dispostos a investir na ideia de levar para as telas um caso que mobilizou a nação. “Foram vários ‘nãos’”, conta. O ‘sim’ veio da produtora El Deseo, do diretor espanhol Pedro Almodóvar e seu irmão Agustín.

 

 

 

O clã estreou na Argentina em agosto passado, com estrondo. É a segunda maior bilheteria de um filme argentino, perdendo apenas para Relatos selvagens, de Damián Szifron (2014). A resposta no exterior também tem sido boa. Trapero levou o Leão de Prata no Festival de Veneza, e o filme emplacou a escolha da Argentina para representar o país no Oscar. Tanto a resposta do público como a da crítica foram um bálsamo sobre a ansiedade do diretor.

Desde 2007, Pablo Trapero se debruça sobre esse projeto. É a primeira vez que seu cinema reconstitui uma história real. Na década de 1980, uma gangue familiar, liderada por Arquímedes Puccio – brilhantemente interpretado por Guillermo Francella –, é presa por sequestrar e matar várias pessoas. Era também um período confuso politicamente – início da redemocratização, após uma ditadura sanguinária. Enfocando as transformações na rotina de uma família de classe média, o longa acompanha o dia a dia de Arquímedes, sua mulher, e os quatro filhos que vivem com o casal, desde quando os crimes são realizados até quando são revelados.

“Dei-me conta de que era um caso famoso, que eu conhecia, mas não havia livros a respeito. Aí comecei a fazer minha própria investigação”, conta Trapero. Para escrever o roteiro, conversou com familiares de vítimas, advogados e repórteres que cobriram o caso na época. Integrantes e herdeiros do clã Puccio não se pronunciaram. “Desde o primeiro momento, pensei que o atrativo desse filme não era o lado policial, mas o da família. Principalmente a relação entre um pai e seu filho”, afirma o diretor.

Ao fazer essa opção, Trapero parte de um fato particular, mas aposta em algo universal: os conflitos familiares. O resultado faz de O clã um dos filmes mais interessantes lançados em 2015. É uma história forte, bem filmada, que fisga o espectador na primeira cena e surpreende ainda mais no final.

ESPECTADOR A cumplicidade com o espectador é algo que sempre interessou ao diretor. Em seus filmes, ele convida o público a se colocar na situação dos protagonistas – seja a da mãe encarcerada, caso de Leonera, ou a dos que suportam a pressão de uma ambulância de resgate (Abutres).

Em O clã, ele segue acreditando que aproximar o público de seus personagens é a melhor maneira de criar emoções. “Queria, ao sair da sala de cinema, que as pessoas tivessem a sensação de ter conhecido alguém real, e não um personagem”, explica. Essa é uma necessidade que Trapero tem como espectador e que transfere para seus filmes. “Quando me pego citando uma frase de um personagem, é como se fosse o que um amigo comentou comigo num bar.”

O desafio em O clã era maior, por se tratar de uma história com a qual ninguém gostaria de se identificar. Como faz a cada novo projeto, o cineasta se preocupou primeiro em entender os personagens e somente depois pensou sobre como narraria aquela história. O ator Guillermo Francella foi um dos primeiros nomes a surgir na cabeça de Trapero, escolha que carregava suas dificuldades.

Francella é conhecido em seu país como um ator de comédias. Nos dramas, surpreendeu quando interpretou Pablo Sandoval em O segredo dos seus olhos (2009), de Juan José Campanella. Ainda assim, é um nome associado ao humor e conhecido por um público mais velho. “Expliquei que não queria um personagem dramático, mas que as pessoas o odiassem. Sei o quanto é difícil para um ator ser odiado pelo público, mas ele disse sim”, lembra o diretor.

O trabalho inicial foi focado na maneira de Arquímedes/Francella trabalhar. Como andava, como falava e, principalmente, como olhava foram detalhes cuidadosamente ensaiados por Trapero. “Ele costumava provocar simpatia e aqui teria que ser o contrário. Foi como descobrir um novo Guillermo.”

O processo de O clã de certa forma revelou um outro Trapero também. O primeiro sinal disso é o gosto assumido por levar para as telas histórias verdadeiras. Seus próximos dois projetos serão baseados em fatos reais, sendo um deles em inglês. E isso é o máximo que ele pode contar agora.

ALEJANDRO SANTA CRUZ/TÉLAM
O cineasta Juan José Campanella revela a escolha de 'O clã' pela Argentina à disputa pelo Oscar (foto: ALEJANDRO SANTA CRUZ/TÉLAM)
Veterano no Oscar

Se a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood levar em conta um equilíbrio continental na escolha dos finalistas à categoria de melhor longa em língua estrangeira no Oscar, O clã tem tudo para ser a pedra no sapato do brasileiro Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. Não que um seja melhor que o outro, são concorrentes igualmente potentes.

É a terceira vez que Trapero tem uma obra escolhida para representar seu país no Oscar. A primeira foi em 2008, com Leonera, e a segunda com Abutres (2010). “Vamos ver o que acontece. Fico muito honrado. Acho que a escolha é também uma notícia de como o filme se comunica com diversos tipos de público”, diz o diretor.

Embora contente com a possibilidade de marcar presença no tapete vermelho mais disputado da indústria do cinema, Trapero não está tão ansioso assim. Com razão: sua mulher, a produtora e atriz Martina Gusmán, espera o segundo filho do casal. A data prevista para o nascimento coincide exatamente com o dia da entrega das estatuetas – 28 de fevereiro de 2016.

REMAKE AMERICANO

Além de O clã, estreia hoje no circuito comercial de Belo Horizonte o remake americano de O segredo dos seus olhos (2009), de Juan José Campanella, vencedor do Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Olhos da justiça é dirigido por Billy Ray, roteirista de Jogos vorazes (2012) e tem Julia Roberts, Nicole Kidman e Chiwetel Ejiofor (12 anos de escravidão) nos papéis principais.

Três perguntas para...
Peter Lanzini
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 (GIUSEPPE CACACE/AFP)
O ator Peter Lanzini, que interpreta o jogador de rúgbi Alejandro em 'O clã' (foto: (GIUSEPPE CACACE/AFP))
É seu primeiro grande papel no cinema. E, de cara, você coprotagoniza o segundo maior êxito da história do cinema argentino. Como o filme surgiu em sua vida?


Como um gesto de generosidade de Pablo (Trapero). Construí minha carreira como modelo e músico e comecei a atuar na televisão. De 2007 a 2010, participei de uma novela teen, Casi angeles. Era um tipo de interpretação naturalista, que me estabeleceu numa zona de conforto. Com Pablo, houve uma reviravolta. Ele não apenas me deu um grande e exigente papel, como me incentivou a atuar com intensidade, sem medo. E eu me encantei com sua dinâmica no set. Pablo ama o que faz e consegue motivar a equipe inteira. Aprendi mais com ele, num só filme, do que em tudo que fiz antes.

Assim como O segredo de seus olhos, mas talvez de forma mais velada, o filme aborda a herança da ditadura militar. Como você vê essa discussão?

Embora os fatos (mostrados no filme) tenham ocorrido na transição para a democracia, nos anos 1980, existem questões da responsabilidade dos militares e de seus asseclas que continuam no ar. É importante que o cinema confronte a sociedade com esses temas, que seguem prementes e não resolvidos na vida nacional.

O que foi mais difícil para você interpretar?

Tudo. Pablo (Trapero) me deu um personagem muito bem escrito e que se transforma em cena. É o sonho de qualquer ator de verdade. Mas o mais difícil foi o rúgbi. Pablo queria realismo, e o esporte era jogado de outro jeito há 30 anos. Foi duro, mas, com a ajuda de um técnico, conseguimos.

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