Para filósofo, filme 'Boi Neon' retrata a pobreza como esvaziamento de horizontes

Premiado longa-metragem do pernambucano Gabriel Mascaro ainda não tem data de estreia definida no Brasil. Leia texto sobre o filme escrito pelo filósofo Érico Andrade

23/11/2015 10:45
* Por Érico Andrade

Mateus Sá/ Divulgação
Juliano Cazarré está no elenco do filme premiado no Festival de Veneza (foto: Mateus Sá/ Divulgação)
De Ventos de agosto ao Boi Neon, Gabriel Mascaro mantém uma preocupação em mostrar como a pobreza não é apenas marcada pela falta habitual e grave de estrutura (banheiro e moradias precários), mas, sobretudo, pelo esvaziamento dos horizontes. A pobreza atrofia o desejo. Com isso ela exerce uma forma de controle social dificilmente superável como mostram todas as personagens de Boi Neon cujos desejos esbarram nas fronteiras da necessidade cotidiana de sobreviver. A filha da Galega desenha cavalos, brinca com bonecos de cavalos (como mostra a delicada cena em que ela põe seu cavalo alado de brinquedo sobre os bois, demonstrando o seu desejo de voar para além daquele cenário) e, sobretudo, sonha cavalos; metáfora animal da ascensão social. No entanto, ela é constantemente castrada e, mesmo condenada por desejar; como mostra a cena em que é obrigada a pegar os dejetos do boi (uma espécie punição por gostar de cavalos) e quando escorrega nesses dejetos, cobrindo seu corpo de fezes e servindo de chacota por parte das outras personagens. A pobreza do empobrecimento do horizonte contamina todas as personagens que se encarregam invariavelmente de mostrar para as demais o lugar naturalizado do pobre: o lugar do não desejo, expresso, por exemplo, na cena em que um vaqueiro reclama de Iremar (personagem principal e seu colega) de estragar as suas revistas porque ele ao invés de curtir naturalmente as mulheres nuas das revistas, as cobre com traços, tinta e desejo de ser estilista.

Desta vez o cenário para mostrar a invisibilidade das pessoas excluídas não é uma praia paradisíaca como em Ventos de agosto, cujos habitantes se resignavam a serem catadores de cocô, pescadores e, na melhor das hipóteses, motoristas (nos dois filmes as mulheres têm o melhor “cargo” e são motoristas). Trata-se de um ambiente de invisibilidade diferente: as vaquejadas. Os catadores agora são os vaqueiros. A mudança das personagens comporta uma mudança mais essencial. A fusão entre o ser humano e o mar do primeiro longa de Mascaro é substituída pela fusão entre o ser humano e o animal; o que propicia um espaço para um diálogo estrito com a obra de outra artista recifense: Rodrigo Braga.

A cena, que aparece no início e, depois, na segunda metade do filme, da mulher dançando com as patas e cabeça de cavalo (o desejo do corpo feminino é associado ao desejo por ascensão social; representado novamente pela figura do cavalo) nos remete imediatamente à obra de Braga Fantasia da compensação que embora seja feita com um cachorro, destaca a fusão do ser humano com o animal e aprofunda a nossa animalidade que tanto tentamos repelir na mesma proporção em que ela não se deixa controlar. Aliás, o controle do animal requer de nós, como mostra a cena em que uma personagem contracena com o cavalo, uma reaproximação com a nossa animalidade. Tal qual uma das obras de Rodrigo Braga, a cena em que a personagem dança numa "Comunhão" (título da obra de Braga em que ele aparece com a cabeça lado a lado com a cabeça de um bode) com o cavalo atesta que o elo entre o ser humano e o animal nos dá a medida de que os nossos desejos podem ser individuais, mas nunca podem ser realizados sem o consórcio da coletividade. É preciso condições materiais mínimas para a realização de nossos desejos. Assim, embora levemente mais otimista do que Ventos de agosto, Boi Neon mostra que a pobreza quando não consegue nos retirar a possibilidade de sonhar, ela, ao menos, torna esse sonho praticamente inexequível.

* Érico Andrade é filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco, com doutorado pela Université Sorbonne (Paris IV)

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