'Orestes' mescla ficção com psicodrama, passado com presente e discute a busca pela verdade

Dirigido por Rodrigo Siqueira, filme discute a construção da justiça e a violência do Estado brasileiro contra os cidadãos

por Pablo Pires Fernandes 25/09/2015 08:00

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Trombone Comunica / Divulgação
(foto: Trombone Comunica / Divulgação)
Fazer perguntas e apontar lacunas da história. Mais do que encontrar respostas e relatar fatos, o filme Orestes, de Rodrigo Siqueira, questiona e expõe os vazios – históricos, sentimentais, mas, sobretudo, o vazio sobre o futuro que desejamos. Utilizando psicodrama e ficção para desvendar a realidade, o diretor funde gêneros, borra fronteiras de estilos e cria uma narrativa particular, repleta de versões e pontos de vista para evidenciar a necessária, ainda que intangível, busca pela verdade. Embora tortuosos, os caminhos que Orestes percorre nos ajudam a enxergar o presente, mesmo que seja por meio de dúvidas.

A violência de ontem e de hoje surge como um elo comum para um discurso sobre a verdade. Embora sem ter relação direta com a ditadura, o diretor de 42 anos conta que o incomodava o fato de ter crescido “numa época em que os livros de história traziam uma história fraudada. Era um vácuo simbólico que a ditadura deixou por causa da censura”.

A violência policial, seja nos tempos da ditadura militar ou nas periferias do presente, deixa vítimas e lacunas. O procedimento de investigação desses crimes de ontem e de hoje coincide nos métodos de ocultamento da verdade. O filme se coloca justamente nessas lacunas e vazios simbólicos e, entre ficção e real, emerge um padrão de fraude. Orestes está em cartaz no Cine 104. Na próxima terça-feira, a sessão (às 21h) será seguida de debate com o cineasta.

Diretor do premiado documentário Terra deu, terra come (2009), Siqueira se interessou pela teatralidade do meio jurídico. Queria filmar algum caso que contivesse aspectos dramáticos e, ao mesmo tempo, dialogasse com a realidade brasileira. Chegou à história singular de Carla Cepollina, acusada de matar o coronel Ubiratan Guimarães, homem que deu a ordem para o massacre do Carandiru, em 1992. O caso, no qual o militar foi morto em um suposto crime passional e do qual Carla foi absolvida posteriormente, continha os elementos de drama e história que o diretor buscava. Mas o adiamento do processo impediu que Siqueira o filmasse.

“Fiquei com a coisa do júri na cabeça. Tive a ideia de filmar um júri simulado, uma tradição das escolas de direito em que os ritos ganham certa licença poética. Em geral, são sobre casos famosos de crimes passionais, mas achei que poderia fazer algum caso que lidasse com a história do Brasil e da ditadura”, conta o diretor. Era 2010, antes da instalação da Comissão da Verdade pelo Congresso. Siqueira, então, se debruçou sobre os relatos da ditadura, reviu casos de desaparecidos, mortos, presos e encontrou a história de Soledad Barret Viedma e de José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo.

Os dois militavam na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), grupo da luta armada contra a ditadura militar. Depois de viver em Cuba, retornaram ao Brasil, em 1970, com a missão de rearticular a dispersa resistência, a partir de Recife. Tiveram um relacionamento amoroso, e Soledad engravidou. Ao fim, o cabo Anselmo se revelou um agente infiltrado e entregou sua própria mulher aos agentes da ditadura. Após ser torturada, Soledad morreu com um bebê de quatro meses na barriga, filho de seu algoz. O episódio ficou conhecido como o Massacre da Chácara São Bento. “É um caso de tinturas trágicas muito absurdas e resolvi partir daqui para fazer o júri simulado”, relata Siqueira.

Ditadura

Diante da história dramática, o cineasta decidiu criar um caso ficcional quase análogo e submetê-lo ao universo jurídico. “Pensei em um júri para lidar com as heranças da ditadura e problematizá-las. Mas percebi que estava lidando com presenças da ditadura”, explica. Daí surgem fatores da ordem do inexplicável: acaso, coincidência, tato para pinçar algum elemento e incorporá-lo ao processo de realização do longa-metragem?.

Fato é que, ao pesquisar sobre o universo jurídico, Siqueira acabou se deparando com Ésquilo (525 a.C./455 a.C.). O célebre dramaturgo grego é autor de Oresteia, tragédia na qual o personagem Orestes mata a mãe para vingar o pai, assassinado por ela. No texto clássico, as erínias – ou fúrias, que personificam a vingança – exigem o sangue de Orestes para vingar a mãe. A peça escrita por Ésquilo parte de uma trilogia, apresenta as reviravoltas repletas de deuses e sangue. O que interessou o diretor brasileiro foi a possibilidade de relacioná-la à discussão sobre o processo democrático.

“A democracia ateniense estava avançando, havia uma série de forças progressistas e outras de atraso, representadas pelas fúrias”, observa Siqueira. Na tragédia, está representada a nova dinâmica social da democracia, em plena formação. “Pela primeira vez, um homem é julgado pelos homens e não pelos deuses.” O julgamento de Orestes acaba empatado e a deusa Atena dá o voto de minerva a favor da absolvição do réu. Para o diretor, a história grega marca o momento em que as decisões deixam de ser tomadas pelos deuses e são feitas pelo princípio de maioria democrática. “Ali, acaba o olho por olho, dente por dente. Seria o primeiro tribunal de júri da história”, diz. Mais inspiradora, porém, foi a possibilidade de resgatar a dinâmica entre as forças da democracia e as do atraso. “O aprimoramento da democracia é feito de fragmentos. É uma história em constante construção.”

Nesse processo, o cineasta tinha em mãos uma tragédia brasileira da época da ditadura, outra tragédia, a grega de Ésquilo, e a intenção de usar a dramaticidade dos tribunais. Primeiro, criou um personagem chamado Orestes e misturou as duas histórias trágicas. Mas a jogada que dá o pulo do gato no filme – seja no aspecto dramático, narrativo ou de gênero cinematográfico – é a inserção de um grupo de pessoas para viver um psicodrama e registrá-lo.

A peça jurídica ficcional sobre o caso de Orestes, filho de uma militante guerrilheira que assistiu à morte de sua mãe traída pelo pai, seu reencontro com o carrasco e o impulso para assassiná-lo são colocados no tribunal. Promotor e advogado, ambos notórios e atuantes profissionais do direito de fato, argumentam sobre o caso. Paralelamente, um grupo de pessoas, com vivências de violência relacionadas ao passado ou ao presente, é confrontado com a história de Orestes. Heterogêneo, o grupo assume o papel do coro da tragédia grega. No mesmo banco, o diretor coloca o caso histórico dos tempos da repressão militar e outro, de uma vítima recente da violência policial.

Nesse caldeirão que mescla ficção e realidade, Siqueira embaralha também o tempo histórico. “Quando juntei pessoas com vivências da ditadura e do presente, essas linhas invisíveis que unem esses dois tempos aparecem, ganham cor e visibilidade”, analisa. Siqueira apresenta situações passadas e presentes, reais e fictícias. Ao romper essas fronteiras, abstrai o imediatismo dos fatos e aponta uma nova direção.

O foco, portanto, se desloca para as estruturas narrativas que se repetem. “Não estou falando de um fato, o filme não é sobre a ditadura ou a violência policial, mas sobre a construção de narrativas e questões simbólicas”, afirma, explicando que foi inevitável identificar e associar os padrões narrativos do Estado contra os grupos de esquerda na época do regime militar e a população marginalizada, pobre e majoritariamente negra, das periferias brasileiras. Em ambos os casos, diz ele, a realidade é encaixada em um roteiro pré-traçado, em geral, forjado e fraudado.

Semana passada ou amanhã podemos identificar algum jovem morto por um policial. O roteiro vai sempre dizer: tentativa de fuga, resistência armada, troca de tiros seguida de morte do suposto meliante. É um padrão. Orestes aborda vários desvios da realidade brasileira e, incrivelmente, se torna mais atual a cada dia. Siqueira tenta resumir seu projeto com uma pergunta: “Nós, como sociedade e instituições, temos o compromisso com a verdade?”.

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