'Sniper americano' toca na ferida da violência derivada da guerra

Filme conta a história do maior atirador de elite dos EUA

por Mariana Peixoto 19/02/2015 08:30

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WARNER/DIVULGAÇÃO
Bradley Cooper interpreta Chris Kyle em Sniper americano. Papel rendeu ao ator uma indicação ao Oscar (foto: WARNER/DIVULGAÇÃO)
O julgamento de Eddie Ray Routh, de 27 anos, entra hoje em sua segunda semana na cidade de Stephenville, Texas, uma das autointituladas “capitais mundiais dos caubóis”. Os advogados do veterano da Guerra do Iraque tentaram adiar a data. Alegaram que a decisão do júri poderia ser muito influenciada pelo fenômeno Sniper americano.


Routh matou num campo de tiros texano, em 2 de fevereiro de 2013, outro veterano do conflito, Chris Kyle, e seu amigo, Chad Littlefield, que nunca integrou as Forças Armadas. Os dois trabalhavam com a reintegração de ex-combatentes de guerra. Routh, que conheceu a dupla no dia do crime, sofria de estresse pós-traumático.

Morto aos 38 anos, Kyle é o mais letal atirador de elite da história dos Forças Armadas dos Estados Unidos. É o autor comprovado de 160 disparos mortais no Iraque – segundo as contas do próprio Kyle, o número de inimigos abatidos é 255, que ele chamava de “selvagens”. Pelo feito nos quatro destacamentos realizados entre 1999 e 2009, o integrante dos Seals – a principal força de operações especiais da Marinha, que se tornou mundialmente conhecida por haver conduzido a operação de assassinato de Osaba bin Laden – tornou-se “A Lenda”. Para os amigos. Para os inimigos, Kyle teve a cabeça a prêmio como o “Diabo de Ramadi”.

Kyle deixou as Forças Armadas em 2009. Três anos mais tarde, publicou a autobiografia Sniper americano (no Brasil, o livro foi editado pela Intrínseca), que figurou durante 37 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Sua história – de caubói de rodeio a atirador de elite – ganhou o cinema pelas mãos de outro caubói solitário, Clint Eastwood.

ESTOURO
Com uma bilheteria de US$ 307 milhões apenas na América do Norte, Sniper americano tornou-se o filme de guerra mais rentável da história norte-americana. O marco anterior pertencia a O resgate do soldado Ryan (1998), que atingiu US$ 215 milhões nos EUA. Ironicamente, Eastwood não foi a primeira opção dos produtores para dirigir Sniper. O filme teria a assinatura de Steven Spielberg, que em 1999 ganhou seu segundo Oscar como diretor por Soldado Ryan.

Sniper americano, que entra em cartaz hoje em todo o país, é o último dos oito longas que concorrem ao Oscar de melhor filme a estrear no Brasil. No próximo domingo, vai disputar outras cinco estatuetas: ator (Bradley Cooper), roteiro adaptado (Jason Hall), edição, edição de som e mixagem de som. Eastwood, vencedor de quatro estatuetas por Os imperdoáveis (1992) e Menina de ouro (2004), ambos como melhor filme e diretor, não foi indicado para direção.

A repercussão de Sniper americano só fez aumentar discussões caras à população dos EUA: o controle de armas e a participação de americanos em conflitos. Na última semana, o presidente Barack Obama enviou ao Congresso pedido de autorização para uso de força militar na campanha contra o Estado Islâmico. Já nesta semana, um amplo debate em Washington visa à organização de uma rede de combate ao extremismo.

Kyle, a despeito das mortes na casa dos três dígitos, é um herói da América redneck. O governador do Texas, Greg Abbott, instaurou o 2 de fevereiro como o “Dia de Chris Kyle”.

Kyle titubeou apenas em sua primeira morte. Na vida real, uma mulher que carregava uma granada; no filme, um garoto (veja as liberdades tomadas pelo roteiro no quadro abaixo). Mas nunca se arrependeu de nada. “Meus tiros salvaram vários americanos, cujas vidas claramente valiam mais do que a alma pervertida daquela mulher”, escreveu.

O filme de Eastwood busca, ao mesmo tempo, fazer um tributo ao personagem – que sempre viveu o dilema pátria versus família – e lamentar a guerra. Ainda que tente olhar para os dois lados, sua realização carece de nuances.

O roteirista Jason Hall (que só teve um encontro muito rápido com Kyle, poucos dias antes de sua morte) criou dois antagonistas. Um é chamado de Açougueiro, capaz de matar até crianças com furadeiras. O outro, Mustafa, seria um atirador de elite tão preciso quanto Kyle, só que jogava no time rival. Ambos são caricaturas de vilões de filmes de ação.

As cenas dos tiros abusam dos closes e das balas em câmera lenta. O rígido treinamento para entrar para os Seals, descrito com riqueza de detalhes no livro, é apresentado em cenas descuidadas.

A apresentação do personagem também é esquemática. Na infância no interior do Texas, com rígida educação cristã, Kyle e seu irmão caçula são apresentados pelo pai aos três tipos de pessoas que existem no mundo: lobos, cordeiros e cães pastores. Fica óbvio que o irmão caçula será um cordeiro e Kyle o cão pastor, que livra os inocentes do mal.

Há ainda o clichê dos clichês, a Bíblia carregada pelo soldado em guerra deixada para trás e sumindo na areia do deserto depois da última missão do militar antes da volta para casa.

A despeito desses problemas, Eastwood busca, já na parte final da narrativa, iniciar duas discussões: a razão da guerra e os efeitos dos conflitos nos soldados na volta para casa. No entanto, são apenas lampejos.

REPRODUÇÃO DA INTERNET - WARNER/DIVULGAÇÃO
À esquerda, Chris Kyle, ainda na ativa, faz mira e aponta sua arma. À esquerda, Bradley Cooper se prepara para atirar, em cena do filme (foto: REPRODUÇÃO DA INTERNET - WARNER/DIVULGAÇÃO)
Confira divergências entre o filme e o livro no qual ele se baseia

A primeira morte

Filme

Na cena inicial do filme – que só vai ser concluída mais tarde, após flashbacks da infância do personagem –, Kyle se vê frente a frente com a primeira morte. Uma criança surge carregando uma granada a poucos metros dos fuzileiros. O atirador pensa duas vezes, chama pelo rádio e toma a decisão. Abate o garoto. A mãe do menino, histérica, pega a granada para enviá-la aos americanos. É também abatida por Kyle.

Livro
“Alguém tentava avisar os fuzileiros pelo rádio, mas não conseguíamos chamá-los. Eles avançavam pela rua, na direção da mulher. ‘Atire!’, ordenou o sargento. Apertei o gatilho. A bala voou. Eu atirei. A granada caiu. Atirei outra vez quando a granada explodiu. Foi a primeira vez que matei alguém quando eu estava com o rifle de sniper. E a primeira – e única – vez no Iraque que matei alguém que não fosse um combatente homem.” Ao final do livro, Kyle, referindo-se a um garoto que encontrou no Iraque, escreveu: “Não iria matar uma criança, inocente ou não.”

O Atirador rival

Filme

Assim que começa a ser tratado como “Lenda” pela quantidade de homens abatidos, Kyle encontra um rival à altura. É Mustafa (interpretado pelo ator egípcio Sammy Sheik), atirador sírio que lutava a favor dos iraquianos e inicia uma briga de gato e rato com o americano.

Livro
“Vasculhávamos com cautela à procura de um atirador de elite iraquiano conhecido como Mustafa. Pelos relatórios que ouvimos, ele era um atirador olímpico, que usava suas habilidades contra americanos e também contra soldados e policiais iraquianos. Fizeram e postaram vários vídeos que exaltavam seu talento. Eu nunca o vi.”

REPRODUÇÃO DA INTERNET
(foto: REPRODUÇÃO DA INTERNET)
BONECO


Chris e sua mulher, Taya Kyle (no filme interpretada por Sienna Miller), tiveram um casal de filhos. Pois os dois roubam as poucas cenas em que aparecem enquanto bebês por uma simples razão: seus intérpretes são bonecos (o que faz a plateia rir em momentos que seriam de muita dramaticidade). Quando o filme foi lançado nos EUA, a internet não perdoou. O desconforto de Bradley Cooper (foto) segurando um bebê/boneco (que ainda se mexe!) viralizou. O roteirista Jason Hall teria tuitado em dezembro que um boneco foi usado porque o primeiro bebê escalado havia adoecido e o bebê substituto não apareceu no dia da filmagem. O tuíte não consta no perfil oficial de Hall no Twitter.

Arquivo Pessoal
Sargento Edivaldo Nascimento dos Anjos Filho, na Bósnia, em 1999 (foto: Arquivo Pessoal)
Brasileiro que atuou nas Forças Armadas americanas relata sua experiência

Nascido em Belo Horizonte, Edivaldo Nascimento dos Anjos Filho foi criado em Sete Lagoas, onde viveu até os 16 anos. Mudou-se nessa época para os Estados Unidos, onde estudou. Terminado o intercâmbio, retornou ao Brasil e durante 10 meses serviu no 4º Grupo de Artilharia Antiaérea (GAAAe), também em Sete Lagoas.

Finalizado o período militar, voltou para os EUA. Vivia em Greenville, Ohio, cidade onde também morou Annie Oakley (1860-1926), artista do Velho Oeste que era exímia atiradora. Um colega marine sugeriu a Edivaldo o alistamento. Ele sabia que não iria ser fácil.

“Nas outras Forças Armadas, o treinamento dura quatro semanas. Para o Corpo de Fuzileiros Navais, são 13”, afirma Edivaldo, que se alistou em abril de 1992. Foi recruta em Parris Island, na Carolina do Sul. Nos EUA, há treinamento somente nessa ilha (para a Costa Leste) e em San Diego, Califórnia, na Costa Oeste. Foi em San Diego que ocorreu o treinamento de Chris Kyle para entrar no Seals, a principal força de operações especiais da Marinha.

O período de Edivaldo em Parris Island não foi nada fácil. Os recrutas costumam sofrer todo tipo de humilhação. “Se você vomita, tem que lamber tudo do chão. No verão, que é muito quente, havia um tipo de inseto que chupa seu sangue. A gente ouvia dos superiores: ‘Você já comeu. Agora tem que deixar eles comerem.” E os recrutas tinham que ficar parados, enquanto os insetos sugavam seu sangue.

Ele diz que só não sofreu mais pelo fato de ser estrangeiro porque já falava inglês fluentemente. Recorda-se, no entanto, de um romeno que virou o saco de pancadas oficial do treinamento. No período em Parris Island, um recruta suicidou-se pulando da janela do edifício onde ficavam.

Uma vez marine, Edivaldo assinou um contrato de oito anos com as Forças Armadas. Sua primeira convocação seria para Guantánamo, Cuba, mas os planos mudaram quando foi chamado para integrar a Guarda de Honra da Presidência dos EUA, em Washington, a chamada 8th & I. Para a guerra, foi convocado para a Bósnia, onde chegou em 1999.

Sua missão, no período em que ficou nos Bálcãs, incluía limpar minas terrestres nas cidades dizimadas pelo conflito étnico. “Quando você vai para a guerra, assina um papel que diz que não pode falar nada do que aconteceu no período. Posso te falar que vi muita coisa, mas não matei ninguém”, afirma Edivaldo.

De acordo com ele, que alcançou a patente de sargento, para um atirador de elite como Chris Kyle, os códigos são muito mais rígidos. “Ele falou muita coisa no livro, mas, pelo código dos snipers, que são a elite, você não pode falar quem, quantos ou como matou.”

O filme de Clint Eastwood, na opinião de Edivaldo, não é para mostrar quantas pessoas Kyle matou. “Ver o filme me fez lembrar de muita coisa. Mas não é filme para gente pequena. Você tem que entender das Forças Armadas para compreendê-lo.” Para o sargento, um das partes mais importantes da narrativa foi mostrar os veteranos.

Quando seu contrato acabou, Edivaldo não o renovou. Começou a trabalhar para o governo norte-americano. Durante nove anos, trabalhou no Departament of Veterans Affairs, atuando em hospitais para veteranos de guerra em Ohio e na Flórida. “O problema com transtorno de estresse pós-traumático é muito comum. Na guerra, você tem que estar sempre alerta. Quando volta, muita gente acha que ainda está nela.”

Edivaldo participou de inúmeras reuniões com veteranos. Segundo ele, uma boa parte dos que lutam, ao voltar para casa, não sabe o que fazer por ignorância. “As pessoas não têm muitas informações, nem mesmo dos seus direitos”, diz ele, que hoje, aos 46 anos, trabalha no setor de imigração do Departamento de Segurança Interna.

 

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