Casamento entre artes cênicas e cinema se aprofunda e ganha experimento

Casos como o de Julia e também E se elas fossem para Moscou?, de Christiane Jatahy, e os já citados Stifters dinge e O urro! revelam o quanto os limites entre as expressões artísticas andam tênues

por Carolina Braga 14/02/2015 12:03

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Aline Macedo
Cena de E se elas fossem para Moscou?, da diretora Christiane Jatahy, que funde a linguagem audiovisual em suas montagens (foto: Aline Macedo )

O primeiro a pisar no palco é o cinegrafista. A atriz caminha para o centro da cena e olha para a grande tela instalada no meio do cenário. Na projeção, créditos iniciais, tal qual um filme. O lugar de relação do espectador com aquela obra fica provocativamente bagunçado. É cinema? É teatro? Assim é Julia, espetáculo com direção de Christiane Jatahy.

Máquinas são protagonistas de Stifters dinge, do suíço Heiner Goebbels. São elas que movimentam de um lado para o outro os televisores de led que exibem parte da narrativa. Teoricamente, é um espetáculo teatral, mas não há ator em cena. Continua sendo teatro? Tudo é mecânico, até o dedilhar das teclas de um piano.

Tem ainda a mistura da experiência no palco com a estética da história em quadrinhos, essência de O urro!, dos diretores Carlos Rocha e Gil Amâncio. De um lado, o ator/narrador e do outro, as animações na tela. Juntos, relatam sobre a cidade em pânico. Entre eles, o afinamento entre homem e máquina. O modo tradicional – e linear – de se contar uma história se mistura a uma proposta que coloca essa própria estrutura em questão.

Diálogo O cinema e o teatro dialogam desde que a sétima arte surgiu no início do século passado. Mas com toda a facilidade de produção audiovisual e de acesso a ela, tem-se tornado marca do teatro contemporâneo um acasalamento explícito das artes cênicas com o cinema. Casos como o de Julia e também E se elas fossem para Moscou?, ambos de Jatahy e os já citados Stifters dinge e O urro! revelam o quanto os limites entre as expressões artísticas andam tênues. Se é que ainda existem.

“Não estou interessado num teatro que traga clichês e estereótipos para o palco, mas numa forma de arte que promova fortes experiências artísticas para o público”, diz o Goebbels. A radical proposta de suprimir o ator faz parte da convicção de que, para se criar o novo, é preciso dizer adeus a antigas convenções. “Por exemplo, a presença no palco. Estou mais interessado na intensidade da percepção”, completa.

Atenta às evoluções de linguagem, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, MITsp, marcada para o período de 6 a 15 de março próximos na capital paulista, joga luz sobre essa “tensão” em busca de novas possibilidades. Se a ausência do intérprete é um dos chamarizes de Stifters dinge, a peça suíça comunga com pelo menos outras quatro experimentações envolvendo o cinema. Ou pelo menos, com aquilo que nos acostumamos a chamar de filme.

É justo nesse lugar que se situa a pesquisa desenvolvida por Jatahy há pelo menos dez anos. Não à toa, a fundadora da Cia Vértice comparece na programação da MITsp com as duas recentes montagens do grupo. Se em Júlia (2011), adaptação do clássico Senhorita Júlia, de Strindberg, cinema e teatro dividem a atenção do público, em Se elas fossem para Moscou? (2014) a plateia tem a chance de escolher se quer ver a peça ou o filme, ambos apresentados simultaneamente e ao vivo.

“Essas linhas de fronteiras me interessam. Essa espécie de ‘entre’ que também pode ser pensado na propulsão de uma coisa pela outra e como se conectam”, diz. Para a diretora, fazer espetáculos desse modo é redescobrir uma nova possibilidade de olhar tanto para o teatro como para o cinema. É um modo de ser contemporâneo.

Nesse processo, desafios são vários, desde lidar com a parte técnica, câmeras, telas e afins no palco, até minúcias que são próprias das artes cênicas Entre elas, o tom da interpretação. Ou melhor, o ideal seria dizer sobre a busca de uma não atuação. Um registro que pareça natural tanto ao que a câmera é capaz de captar como perceptível ao espectador presente. “O que acabei descobrindo foi que, quanto melhor ficava para o teatro, melhor era também para o cinema. Foi uma chave surpreendente”, afirma.

Por mais que o vídeo seja hoje elemento fundamental de intermediação, até mesmo social, para Jatahy o uso desse recurso num espetáculo precisa estar ligado à dramaturgia. “O vídeo pelo vídeo, como fator estético da cena, não me interessa. Acho que este uso está desgastado”, critica. A diretora acredita que existam inúmeras possibilidades de uso que serão capazes de renovar o olhar.

É esse também o interesse de Heiner Goebbels com a sua peça sem atores. “Meus trabalhos são uma oferta, um convite a descobrir. O público é geralmente mais inteligente do que um pequeno grupo de artistas que concebe uma obra. Nunca devemos subestimar a riqueza de impressões que um público possa ter”, diz.

‘Aí não é mais teatro’

“A pesquisa de linguagem é o que me aguça”, afirma o diretor Carlos Rocha. Foi justo esse interesse que o fez se entregar a uma experiência até então inédita em sua carreira, em parceria com Gil Amâncio. Misturar teatro, cinema, animação, história em quadrinhos e música. O urro!, em cartaz na Sede da Funarte a partir de quinta (19), é um amálgama disso e fruto de muita experimentação.

A primeira versão estreou em agosto do ano passado. Para a nova temporada, várias alterações foram feitas, sempre no sentido de se descobrir como afinar ainda mais o diálogo entre as expressões manejadas na montagem. Houve um momento em que o diretor também pensou em suprimir o intérprete, assim como fez o suíço de Stifters dinge, mas percebeu que não era o caminho desejado.

Sinto um pouco essa tendência de chegar até a supressão do ator e da cena, mas aí, na minha visão, não é mais teatro. Para mim, a presença física do ator é necessária. Ele precisa estar em cena, dialogando com o que quer que seja”, afirma. Em O urro! o ator André Senna é quem desempenha esse papel. Rocha diz que, desde o momento em que optou por esse formato, a todo instante busca tensionar o “teatro normal” com as misturas que propõe para a nova cena.

Até hoje, já foram 38 versões do roteiro, assinado pelo próprio Rocha. Segundo ele, o primeiro texto teve a missão de engravidar as outras áreas. Ou seja, oferecer elementos para que Marcelo Lellis pudesse desenhar a HQ, assim como o trabalho de animação, edição e da trilha sonora de Gil Amâncio fossem feitos. “A partir do momento que começa a fazer isso, o texto não é mais oralizado. Já é uma incorporação visual”, observa o diretor.

A experiência deixa marcas na carreira do diretor, segundo ele diz. Do cinema, vem a possibilidade de trabalhar com narrativa não linear, com cortes e até zoom. “Acho que o cinema aprende dramaturgia com o teatro, que pode dar mais consistência temática. E a gente ganha em linguagem, em perceber a liberdade que o cinema tem na narrativa”, conclui.

• TEATRO-CINEMA NA MITsp

Julia e E se elas fossem para Moscou?
Christiane Jatahy é a única brasileira convidada pela MITsp. As duas peças são resultado de pesquisas distintas, mas que têm a integração com o cinema como ponto em comum. Julia tem cenas pré-gravadas e outras filmadas ao vivo. E se elas fossem para Moscou? é uma peça, mas também é um filme. São dois espaços diferentes entrelaçados, e o público escolhe de qual ponto de vista quer ver essa história sobre três mulheres de hoje.

Senhorita Julia
Com direção da inglesa Katie Mitchell, essa outra adaptação da obra de Strindberg também tem a relação com o vídeo como peça-chave. Nessa montagem de ritmo lento e diálogos mínimos, o que acontece na tela acontece no palco, mas nem sempre em momentos idênticos.

Stifters dinge
Heiner Goebbels é considerado um dos encenadores mais radicais da atualidade. No espetáculo sem atores, tudo gira em torno da consciência das coisas e/ou adereços. Luz, imagens, sopros, sons, vozes, vento e névoa, água e gelo se tornam protagonistas.

Arquivo
Espetáculo israelense, com direção de Arkadi Zaides, parte de imagens captadas por voluntários palestinos que vivem na Cisjordânia. Eles receberam câmeras para registrar cenas em territórios ocupados. A partir do filme, Arkadi traduz em dança contemporânea os gestos captados na vida real. O espetáculo tem temporada prevista em BH.

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