O diretor iraniano de 'Gosto de cereja' defende cinema contemplativo

Sem apego ao passado, ele diz que o formato digital supera a película

por Carolina Braga 06/04/2014 09:00

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

RECOMENDAR PARA:

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

CORREÇÃO:

Preencha todos os campos.
Joaquin Sarmiento/AFP
Abbas Kiarostami defende o papel ativo do espectador e diz que repudia qualquer tentativa de manipulação das imagens (foto: Joaquin Sarmiento/AFP)

Abbas Kiarostami tem um olhar contemplativo. É daqueles que entram em casa alheia pé ante pé. Com sorrisos contidos e o ar desconfiado. Tímido. Não parece ser adepto a homenagens, tributos, ainda que a educação o faça respeitar o agrado. Dá sinais de que prefere ouvir do que falar. Eis o homem que há 44 anos resolveu contar histórias por meio das imagens, dando sempre liberdade de interpretação a quem recebe. E isso é tão caro a ele que confessa: “Vou poucas vezes ao cinema. Nem sei quando foi a última vez”.

A confidência diz muito sobre o diretor iraniano, criador de obras-primas como Gosto de cereja (1997), ganhador da Palma de Ouro em Cannes, Dez (2002), Cópia fiel (2010), Um alguém apaixonado (2012) e muitos outros. “Como fazer um filme sem refletir?”, questiona em um recado direcionado aos adeptos do cinema ultraeditado, de imagens em close. Pois o ritmo frenético da produção contemporânea vai totalmente contra ao que Kiarostami pensa sobre – e para – o cinema.

Para ele, o poder de um filme reside nos planos abertos. É quando o diretor tem a chance de dar o direito ao espectador de ver na perspectiva que lhe convier. O foco pode estar no diálogo, na representação dos atores principais ou mesmo em quem passa lá no fundo. “Com os planos mais abertos o espectador tem papel mais ativo”, defende. Se é assim que o cinema tem sentido para ele, e se o que temos visto hoje vai em direção oposta aos planos contemplativos, Kiarostami lamenta. “O direito do espectador passou para o diretor”. Seja no Irã, no Brasil, na França, no Japão. É sintoma do presente.

A primeira aproximação artística de Abbas Kiarostami foi com as artes plásticas. O menino nascido em Teerã em 22 de junho de 1940 queria ser pintor. “Somente a imagem me completava”, lembra. Daí para o cinema foi um pulo, já que, como defende, “o papel de relatar uma história é responsabilidade da imagem”. A câmera, no caso, virou seu pincel.

“Nada acontece nos filmes de Kiarostami.” Eis um lugar-comum bastante difundido e que apenas revela insensibilidade de quem comunga com esse juízo apressado. Na verdade, nada é gratuito no cinema de Abbas. Inclusive os acontecimentos. Há uma escolha por ações que não são explícitas. Perspectiva corroborada pelo próprio cineasta.

Tomando por exemplo uma de suas obras mais recentes, Um alguém apaixonado (2012), a riqueza da trama está muito mais no que o espectador será capaz de imaginar sobre a relação de uma jovem (Rin Takanashi) e um senhor (Tadashi Okuno), do que propriamente o que encontrará na tela. O silêncio que diz muito, aliás, é marca de tantas outras características da ética das imagens do cineasta iraniano.


Fim da película

São 43 filmes, entre longas, curtas e documentários, como diretor, sendo 45 como roteirista. Kiarostami começou a produzir em 1970. Era o tempo de ouro da película, curiosamente usada a contragosto pelo realizador. Sim, por incrível que possa parecer, Kiarostami deixa transparecer que sempre teve preguiça de filmar em celuloide. “Já não tenho ânimo para trabalhar com 35mm. Comprei minha primeira câmera digital no Japão, há 20 anos, e senti uma liberdade de mentalidade”, conta.

Além de muito mais barato, o digital apareceu na vida de Kiarostami como autorização para descobrir outras maneiras de contar histórias por meio da imagem. Não há como negar a importância da revolução que a tecnologia representou – e ainda representa – para o cinema. “A câmera digital te dá valentia. Tem um aspecto de descobrimento”, confessa, afastando qualquer saudosismo ligado ao fim do 35mm.

Independentemente do suporte utilizado, o que não vale para Kiarostami é o sequestro do espectador. “A única coisa que não gosto é da manipulação”, ressalta. É o cinema da liberdade. Embora viva em um país marcado por conflitos políticos e religiosos, os filmes do diretor são poemas visuais, por mais pesados que sejam os temas.

Apesar de avesso a grandes ações, da escolha por planos abertos e por fazer o espectador passear com a câmera, os personagens de Kiarostami estão sempre em transformação. Seja ela interior ou não. Com uma voz cadenciada, que o coloca em lugar do mestre, o cineasta iraniano explica que o que diferencia o homem de uma árvore é sua capacidade de se mover. Essas transformações são o que interessa ao cinema que faz. “Não se limite ao local onde está. Não se pode morrer no mesmo lugar do nascimento”, filosofa.

Abbas e Gabo

No mês passado, o cineasta Abbas Kiarostami recebeu um tributo do Festival internacional de Cinema de Cartagena de Índias, da Colômbia. O diretor chegou à cidade obcecado pela ideia de conhecer o escritor Gabriel García Márquez, personagem ilustre do local. Decepcionou-se ao saber que Gabo vive no México e há muito não retorna ao país natal.

O interesse do diretor iraniano em conhecer o escritor deve-se especialmente ao livro Memórias de minhas putas tristes. “Quando estava fazendo Like someone in love (2012), alguém me recomendou a leitura. Não gosto de fazer isso enquanto filmo, deixei para quando terminasse. Fiquei encantado”, conta.

Tela e livro

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1997, Gosto de cereja é apontada como uma das obras mais importantes da cinematografia de Abbas Kiarostami. Alçado ao posto de clássico, o longa está disponível na íntegra no YouTube, com legendas em português. Para quem quiser conhecer mais o trabalho do cineasta, o crítico e estudioso Jean-Claude Bernadet publicou, pela Editora Companhia das Letras, o livro Caminhos de Kiarostami (2004), análise completa do trabalho do cineasta.

Principais filmes


» Um alguém apaixonado (2012)
» Cópia fiel (2010)
» Dez (2002)
» O vento nos levará (2000)
» Gosto de cereja (1997)
» Através das oliveiras (1994)
» Onde fica a casa do meu amigo? (1987)

MAIS SOBRE CINEMA