'Shoah', documentário sobre o massacre dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, ganha edição em DVD

Filme de Claude Lanzmann será debatido nesta quinta-feira, na Humberto Mauro

por João Paulo 03/04/2013 08:14

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IMS/Divulgação
Cena de Shoah, documentário que descreve o mecanismo de extermínio dos judeus por meio de depoimentos de personagens ligados ao massacre (foto: IMS/Divulgação)
Um homem de aproximadamente 50 anos, num pequeno barco de madeira, desliza por um rio limpo, cantando uma canção folclórica numa língua estranha. A cena é suave, a paisagem – um bosque europeu –, pacífica. Nada parece indicar o que vem a seguir: o mais importante documento já feito sobre o assassinato de 6 milhões de judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. O filme 'Shoah' (1985), de Claude Lanzmann, com nove horas e meia de duração, demorou mais de 10 anos para ficar pronto. Sem qualquer imagem de arquivo que lembre o massacre, sem encenação do horror por atores, o filme dispõe ao espectador o testemunho direto de vítimas, algozes e observadores passivos que viveram aqueles momentos.


A cena inicial tem como personagem Simon Srebenik, um dos dois únicos sobreviventes do massacre dos judeus em Chelmno, na Polônia, que deixou um saldo de 400 mil mortos. Lá, não foi utilizada câmara de gás. Os prisioneiros eram levados em viagens em caminhões fechados e morriam asfixiados pela fumaça que era dirigida para o interior do veículo. Simon tinha 13 anos quando todos os prisioneiros foram mortos e o campo fechado. Ele sobreviveu mesmo depois de receber uma bala na cabeça. Foi para Israel e, a convite do cineasta, voltava pela primeira vez ao local onde viu morrer sua família. Ele olha para o terreno vazio e parece enxergar as cenas do passado. O cineasta sabe que é impossível recriar a imagem do horror. 'Shoah' leva ao limite essa impossibilidade.

O filme, muito debatido e pouco assistido, agora chega ao público em versão mais acessível, em estojo com cinco DVDs, editados pelo Instituto Moreira Salles. Para marcar o lançamento em Belo Horizonte, será realizada amanhã, às 19h15, no Cine Humberto Mauro do Palácio das Artes, um debate sobre o documentário, com a participação de Renato Lessa, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ilana Feldman, pesquisadora, e Luiz Nazário, professor da UFMG, com mediação de Lyslei Nascimento, coordenadora do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG.

Na ocasião será exibido 'O relatório Karski', filme produzido por Lanzmann para a televisão francesa em março de 2010. Trata-se de uma espécie de continuação de 'Shoah', centrado em um único personagem, o polonês Jan Karski, que foi mensageiro do Estado Polonês na Clandestinidade, responsável por levar aos aliados informações sobre a Solução Final, tarefa que executou com determinação, embora seu testemunho tenha caído no vazio.

Nova expressão A importância de 'Shoah' foi tão grande que mudou até mesmo a forma de se nomear a matança dos judeus. Antes do filme (e do livro que se seguiu ao documentário), em quase todo o mundo a situação era descrita como Holocausto, palavra que tem fortes conotações religiosas. Shoah, por sua vez, pode ser traduzido como massacre, catástrofe, calamidade. Como explica Lyslei Nascimento, “tal como sucede com ‘genocídio’, ‘Holocausto’ foi trivializado, primeiro ao ser adotado como nome de uma série de televisão e depois pelo seu uso indiscriminado na mídia, servindo tanto para caracterizar assassinatos em série como surtos de doenças fatais na África. Daí a decisão de utilizar, o termo hebraico Shoah”. Para Luiz Nazário, o filme de Lanzmann influenciou até mesmo a troca da palavra Holocausto pela palavra Shoah em muitos estudos acadêmicos.

A importância do filme foi muito além do nome e do tema, influenciando a história do cinema e redefinindo a forma de se fazer documentários. O espectador pode estranhar ainda hoje a estrutura do trabalho de Lanzmann. Ele está presente em muitas ocasiões, faz perguntas duras, interpela os depoentes e os tradutores com observações pessoais. Em algumas cenas, em entrevistas em língua que não domina, como o polonês, o hebraico e o iídiche, o espectador assiste ao cineasta perguntar à tradutora, ouve a pergunta traduzida, escuta a resposta na língua original e, em seguida, toma conhecimento da fala do entrevistado pela síntese feita pela tradutora. É preciso que se desfaçam todos os artifícios de montagem, dando ao espectador a sensação real de participar daquele momento.


“O impacto do filme se deve à intenção do diretor em recusar a mediação ficcional da Shoah para o espectador. O documentário está na contramão de um tipo de representação que usa a encenação, que usa atores, cenários, roteiros feitos para emocionar. O documentário de Lanzmann é testemunho, não entretenimento”, analisa Lyslei. O método seguido com rigor pelo cineasta permite que tanto os depoimentos de vítimas como de perpetradores da violência contra os judeus se igualem na composição de um contexto que torne o horror compreensível. Chamam atenção, neste sentido, as falas de camponeses, aparentemente ingênuos, que narram antigas cenas de violência que testemunharam como se o passado não fizesse referência a eles. A sensação é de estranhamento.

Para Luiz Nazário, esse mal-estar ajuda a explicar a recepção raivosa das autoridades polonesas ao filme. Rodado parcialmente numa Polônia ainda comunista, os poloneses revelam-se bastante antissemitas. “Não foi por acaso que os nazistas decidiram montar naquele país os seis campos de extermínio: Auschwitz, Chelmno, Belzec, Treblinka, Sobibor, Majdanek. Na Polônia viviam mais de 3 milhões de judeus – a maior comunidade judaica da Europa –, e o antissemitismo estava arraigado na população, profundamente católica.”

Lyslei Nascimento vai adiante e diz que 'Shoah' sempre será incômodo, “principalmente em países que possuem explícitas e implícitas políticas de esquecimento”, avalia. Em outras palavras, Lanzmann parece mirar algo que ainda estava na sombra da história e do destino dos judeus quando o filme era feito: o negacionismo, o revisionismo e o sentimentalismo barato. Contra esses desvios, nada mais que a verdade.

Shoah
Programação
19h15 – O relatório Karski (Le rapport Karski), de Claude Lanzmann, 48 minutos
20h15 – Debate com Renato Lessa, Ilana Feldman e Luiz Nazario, com mediação de Lyslei Nascimento.
l Amanhã, no Cine Humberto Mauro do Palácio das Artes, Av. Afonso Pena, 1.537, Centro, (31) 3236-7400.

Três perguntas para

Luiz Nazario, Professor da UFMG

1 - Como Shoah se insere na história de outras narrativas cinematográficas sobre o Holocausto?
O filme centra-se no extermínio dos judeus. Não tenta fazer, como 'Nuit et brouillard' ('Noite e brumas', 1955), de Alain Resnais, uma síntese poética do nazismo. Deixa de lado o extermínio de eslavos, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová. Lanzmann não pretende ser universalista. Ele se posiciona como um judeu que tenta, através dos recursos do cinema, entender o que aconteceu ao seu povo durante a Segunda Guerra, e como esse povo pode ser quase inteiramente exterminado sob o silêncio do mundo.

2 - Como você avalia a força do documentário em meio a outras formas de narrativa sobre o Holocausto, como os livros de Primo Levi e os depoimentos de sobreviventes dos campos de concentração?
O filme de Lanzmann não procura comover o espectador, sua postura é racional, ele pressiona os entrevistados em busca da verdade, doa a quem doer. Não quer dizer que o filme não emocione os espectadores até às lágrimas, mas esse não é o seu objetivo. Ele não recorre aos recursos normais de um filme que pretende “tocar” a audiência. Não há trilha sonora no filme, nem efeitos especiais, é longo para os padrões da indústria, não foi feito para divertir, nem para distrair. O filme exige reflexão constante; é uma aula de história realizada por meio de depoimentos, com um mínimo de encenação.

3 - Como o filme se insere no quadro internacional contemporâneo marcado por ameaças de ressurgimento das ideias nazistas?
As ideias nazistas ressurgiram logo após a guerra, ganharam pouco a pouco o mundo pelos skinheads e hoje se difundem em massa na internet. As ideais nazistas também ganharam os países árabes através da tradução e edição em série do livro de cabeceira de Hitler, o panfleto antissemita 'Os protocolos dos sábios de Sião', forjado pela polícia czarista. O movimento islâmico contaminou, por sua vez, a esquerda mundial, de modo que Israel encontra-se isolado, boicotado, difamado, como os judeus sob o nazismo. Nesse contexto, Shoah é o filme mais importante que menos visto será.

Para não esquecer

Para realizar seu filme, sem imagem de arquivo ou outros recursos, Claude Lanzmann contou, além dos depoimentos (ele gravou mais 350 horas, hoje depositadas no Museu do Holocausto, em Israel), com a colaboração de três intérpretes – Barbara Janicka, Francine Kaufman e a senhora Apfelbaum – presentes na filmagem para a tradução simultânea das falas. A câmara é sempre viva para captar todas as nuances, já que o momento da gravação é tudo que o cineasta dispunha.

O documentarista, em várias ocasiões, chegou a atacar filmes como 'A lista de Schindler', de Steven Spielberg, pela tentativa de dramatizar o Holocausto. Em 'Shoah', além de não haver espaço para encenação, o cineasta foge de qualquer enquadramento, seja ele psicológico, sociológico ou mesmo moral. Para ele, qualquer tentativa de descobrir um porquê seria uma forma de capitulação, quase um ato de obscenidade, já que não se pode sequer considerar a possibilidade de uma resposta à questão: Por que matar judeus?

Como ele mesmo relatou: “Quando comecei o filme, tive que lidar, por um lado, com o desaparecimento dos vestígios: não havia coisa alguma, absolutamente nada, e eu tinha que fazer um filme a partir desse nada. E por outro lado, tive que lidar com as impossibilidades, até mesmo dos próprios sobreviventes, de contar essa história; a impossibilidade de falar, a dificuldade – que pode ser vista ao longo do filme – de trazer à luz e a impossibilidade de nomear: seu caráter inominável”.

A experiência de assistir a Shoah é necessária ainda hoje, quando tanto o fantasma do neonazismo como as intolerâncias ameaçam a paz do mundo. “Enquanto houver vozes corajosas como a de Lanzmann, insurgindo contra a banalização do mal, contra a mentira histórica e a reinvenção fraudulenta da shoah, estaremos lutando contra o ‘mal do arquivo’, que seria uma forma de anular a história, imobilizar suas consequências pelo esquecimento, vitimizando criminosos e criminalizando vítimas. Certamente, isso seria perpetuar o crime”, completa Lyslei Nascimento.

Saiba mais
Claude Lanzmann

O diretor de 'Shoah', Claude Lanzmann nasceu em 1925, em Paris, e estreou no cinema como roteirista num filme sobre a guerra da Argélia, 'Élise', ou 'la vraie vie', de Michel Drach, em 1979. Seu primeiro documentário como diretor foi 'Por que Israel', de 1973. Dois anos depois começou a colher os depoimentos para 'Shoah', que seria concluído 10 anos depois. Em seguida vieram 'Tsahal' (1994) e 'Un vivant qui passe' (1999). Além do cinema, Lanzmann foi diretor da revista 'Le Temps Modernes', fundada por Jean-Paul Sartre. Em 2011, esteve no Brasil para o lançamento do livro 'A lebre da Patagônia' (Companhia das Letras). No volume de memórias ele narra sua militância na resistência, a participação na luta anticolonialista na Argélia e a amizade com nomes de ponta da intelectualidade francesa, como o próprio Sartre, Simone de Beauvoir (com quem manteve relacionamento íntimo) e Gilles Deleuze. A passagem de Lanzmann pelo país foi polêmica. Ele se desentendeu com a organização da Festa Literária de Paraty (Flip), tendo batido boca com o mediador de sua apresentação
e com o curador do evento.

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